quarta-feira, 7 de abril de 2010

António Setas. O casamento do Alvarenga. Dezenas de filhos que tinha deixado a sós com as mães negras e mulatas do sul de Angola


O buril do zé-povinho tem destas coisas, talhar no barro de que são feitos os homens rugas mais profundas do que as que a realidade lavra e menosprezar a beleza das feições. E se por certo julgavam os miraltões que os Alvarenga de santos não tinham nada, e que o pai se comportava como um soba prepotente, esquecido das dezenas de filhos que tinha deixado a sós com as mães negras e mulatas do sul de Angola, que o filho não devia grande coisa à inteligência, e que a Carla, moça por demais independente para o gosto da família, era senhora de plantio fértil, sim, mas trabalhado na cama, e qualquer cama lhe servia porventura aparecesse macho endinheirado que sucumbisse aos seus encantos, menos autêntico não era o espírito batalhador do pai, e, mais que tudo, o valor da mãe, que sempre fez fronte à adversidade e lutou anos a fio para dar o pão nosso de cada dia aos filhotes, sem olvidar que a fortuna da família quadruplicou de um dia para o outro graças à sua argúcia, quando todo o dinheiro que tinham de lado foi trocado, durante uma breve estadia em Saurimo, por puríssimos diamantes adquiridos ao preço da uva mijona.

Agora, com o casamento do Paulo, juntar-se-ia ao núcleo familiar uma frágil donzela, Lia, de pele branquíssima, lábios carmim e virgindade duvidosa, mas com evidentes qualidades para acalentar desejos palpáveis. «Virgem? Só se for nas orelhas», dizia o pai Alvarenga. Contudo, esta delicada questão já tinha sido ultrapassada mercê dos chorudos benefícios a tirar do casamento. A família da noiva ficava praticamente de tanga. Uma estúpida cláusula do testamento do avô da noiva, ex-senhor de todos os bens familiares, terras, prédios e quotas em empresas de renome, privilegiava de modo incompreensível a “netinha adorada”, muito em breve de maior idade.

Os herdeiros preteridos entretinham um ruminar de boi bravo perante essa loucura, “dum velho caquéctico que aos oitenta e tal anos dava vinte escudos, uma fortuna!, às moças da sua quinta de Chaves para receber um beijinho, e se desfazia em baba diante dum pechisbeque”. Ir à boda e comer à mesa dessa... dessa banda de portugueses de segunda, angolanos, e ainda por cima eram mulatos e traficantes de diamantes?!...Nem pensar! Preferiam morrer.

Farófias! Deixa andar, a caravana não vai parar por tão pouco. Muito mais importante era acertar os últimos pormenores da cerimónia, entre os quais, à parte os camarões, que mais cedo ou mais tarde haviam de aparecer, sobressaía o ritual religioso - atenção, missa cantada! -, que teria lugar na igreja de Sto. Antão, verdadeira peça de museu, classificada Monumento Nacional de Portugal. Só que os cantores de Sto. Antão... «Peço desculpa», disse a mãe Paulina, «não quero!, fífias, é às resmas». E olha o Paulo a levantar o dedo, «Posso falar com o Carlos, se quiserem...», «Qual Carlos?» perguntou o pai. «O Carlos d’Almeirim, é um dos melhores tenores da Europa», «Tu conheces?», «Conheço, e bem!», «Trás o homem, custe o que custar».

Seguiu-se um subtil e breve momento de prazer, silencioso, como se o dinheiro fosse coisa que se pudesse saborear (e é), interrompido pelo pai, «Eu!... Eu tenho duas surpresas, vocês vão ver», «Quais?» perguntou a mãe, «Esperem. Surpresas são surpresas», rematou o velho, velho “soba”.

Camarões “assim!”, é que não havia maneira de encontrar, tudo o resto seguia os seus trâmites. Uma firma espanhola especialista na organização de banquetes, a “El Dorado”, que se instalara em Portugal depois da formação da CEE, inundando o mercado luso ao ponto de tirar o pão francês da boca dos portugueses para lhes fornecer outro, imitado dos mesmos franceses, e dos italianos, e dos gregos, a preços baixíssimos, foi contratada para se ocupar de tudo, desde a recepção dos convidados, aperitivo, banquete, digestivos, seguros contra tudo e mais alguma coisa, até à ambulância! «Ambulância!!?», fez a mãe, que tinha contactado a sobredita empresa, «Sim, há sempre pessoas que exageram, por vezes casos graves. Connosco não há problemas, temos uma ambulância». «E referências?» perguntou a Carla, suspicaz. Paf! Uma resma de extractos de jornais e revistas em cima da mesa, com um charabiá comum, «...e apreciámos de sobremaneira a subtil aliança de aromas e sabores, assim como o serviço impecável, omnipresentes no banquete de Sua Excelência». Concludente. Assinaram.

Já que se obstinavam na minúcia, quedava-se um pequeno, mas não menos importante pormenor a apurar: em que sítio seriam tiradas as fotografias? Aqui? Acolá? Além?...«Não, senhor!» cortou o pai, «vamos fazer uma ponte. Romântica, ‘tás a ver?... Dum lado ao outro da piscina. Basta esconder o mosaico com areia e uns vasos de flores, e a piscina é um lago. Ah! é preciso pelo menos dois cisnes, não se esqueçam, são importantes os cisnes». Em menos duma semana a ponte foi levantada, um assombro de madeira de cerejeira, teck e acácia, com incrustações de meranti a formar arabescos à moda antiga, trabalhada a preceito.

Imagem:
http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/renoir/land/dejeuner-canotiers/renoir.dejeuner-canotiers.jpg

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