quarta-feira, 14 de abril de 2010

António Setas. O casamento do Alvarenga. Foi esse o momento escolhido por Carla para se eclipsar com o Carlos d’ Almeirim,


Arte final do Alvarenga

«E esses foguetes, é p’ra hoje ou p’rá manhã!!?» gritou o velho Alvarenga mal tudo entrou na ordem. Referia-se ao tal fogo anunciado pela Carla. Bom profissional, o mestre fogueteiro estava a postos, «Podemos começar?», «Mas ‘stás à espera de quê!?»

Alguns segundos mais tarde os jactos luminosos do fogo de artifício começaram a desenhar arabescos no espaço. Nasciam nos altos do céu estrelado, desciam lentamente, depois de se terem aberto em grinaldas multicolores, e iam morrer perto dos tetos das casas. Não havia alma que desviasse os olhos de tão belo espectáculo. O pai Alvarenga, feliz, digeria com dificuldade a alegria que lhe ia no peito. Havia gente que aplaudia.

Foi esse o momento escolhido por Carla para se eclipsar com o Carlos d’ Almeirim, como dois anjos assaltados pelo pecado, com medo de cair das nuvens, a olhar em redor. Deram uma volta pelo jardim, a disfarçar, e, no momento em que iam a entrar por uma das portas da ala direita da residência, a dita “porta do cavalo”, discreta, o “entarraxado” tenor parou e ficou um momento a olhar para o fogo de artifício. Centelhas rutilantes continuavam a acender-se no céu à laia de caleidoscópios gigantes, a surpreender os olhos dos convivas com sarabandas de formas e cores movediças. Não muito longe, aí a uns cem ou duzentos metros do terraço baixo, uma luzinha minúscula, branca, curiosamente imóvel, ainda que cintilante, como uma estrela muito baixa, intrigava o homem, que fez notar à Carla o estranho fenómeno, «Olha ali!».

Mas esta, apressada, a pensar unicamente nos momentos palpitantes que ia viver com um especialista do dó de peito, a apertar-lhe o braço e a dizer, «Deixa estar, é um fogo de Sto. André, é a época, olha ali!», a mostrar outra luz cintilante como uma estrela, e a puxá-lo pelo braço, quase que o empurrou para dentro de casa. E ele, também mordido pelo desejo forte de cometer o mais saboroso dos pecados mortais, esqueceu a estranha luz e deixou-se levar. Entraram na mansão sem ninguém os ver e só pararam na cama da Carla. E já que havia fogo de artifício lá fora, fizeram o deles nos lençóis, o Carlos d’ Almeirim com o lume nos dentros, e ela a acender-lhe o rastilho com toda a arte de fêmea sabida em artes de pirotecnia das almas, que ninguém lhe ensinou. Sabedoria nada.

Quando acabaram, saíram sorrateiramente pela mesma porta.
No traço alto reinava uma alegre confusão. Por vontade da mãe Paulina, ó surpresa!, travessas com camarões “assim!”, que, de que mares vinham não se sabe, tinham feito a sua aparição entre os pratos de sobremesa; o pai, estimulado pelos Alexandras do maître-d’hotel, perito em cocktails, estava cheio como uma pipa; el Ejecutivo tinha vomitado as tripas, por causa dos nervos; e os músicos tinham recomeçado a tocar. Desta vez lá vinham uns rocks e uns sambas mais atrevidos. Os digestivos desenlaçavam as atitudes dos mais inibidos e faziam estragos nas cachimónias mais desenvoltas, o ambiente era de festa.

Os noivos dançavam, a mãe Paulina dava um gosto ao pé, a pista estava cheia de gente. A Carla e o Carlos estavam para se meter no barulho, mas lembraram-se de ir ver nas traseiras da mansão se a luzinha que tinham visto ao entrar ainda cintilava. Não, não cintilava, era uma fogueira! A Carla nem tempo teve de puxar pelo parceiro, começou a correr em direcção ao terraço alto a gritar, «Fogo!! Fogo!!! Acudam, o palheiro está em fogo!!» E na pista de dança, à volta das mesas e dos aparadores, giraram as cabeças dos foliões numa tentativa para compreender uma frase de que só ouviam a tónica, fogo. « Fogo!? Qual fogo? Outra vez!?» Desta vez, porém, era fogo a sério. A luz cintilante que o tenor tinha descoberto coisa de uma hora antes, tão baixa e fraca que parecia fogo de Sto. André, era então rastilho de um fogo de palha. E eram dois mil, os molhos que ali estavam!

Imagem: http://sp6.fotolog.com/photo/6/26/63/anaisaura/1199705764_f.jpg

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