Arte final do Alvarenga
De uma minúscula centelha, que nem grilo assaria, nasceu aquela chama forte, e nada podia agora impedir que ela destruísse tudo em redondo, até ao mar, se não houvesse intervenção dos bombeiros. Desfizeram-se os pares de dançarinos e os casais em folguedo à volta dos aparadores, e os que namoravam nos jardins levantaram as cabeças, intrigados, já a pensar que tinham sido descobertos. Carla indicou o caminho a seguir, e todos, ou quase todos, foram ver o que se passava.
De pronto, a mãe Paulina telefonou ao serviço de bombeiros, pois não havia água na mansão que apagasse tal labareda. Enquanto ela crescia, apareciam outros focos de incêndio. Propagavam-se, muito rápidos, a ameaçar a residência, e o pai Alvarenga, tão cheio de digestivos que só se aguentava em pé por teimosia dos nervos, tão grosso estava, pôs-se à procura d’el Ejecutivo. O anfitrião queria perguntar-lhe por que raio de cargas de água tanta desgraça lhe caía em cima em tão pouco tempo. Infelizmente, el Ejecutivo tinha caído de inopinada maneira logo após a sua crise de nervos, vítima duma repentina baixa de tensão, faltaram-lhe as pernas e estatelou-se no chão, desmaiado.
Dado o caso, substituía-o o maître-d’hotel, perturbadíssimo com os eventos e também prestes a cair, mas de bêbado. O pai Alvarenga encontrou-o a preparar um Porto Flip que não lhe tinha sido encomendado. Após uma breve troca de palavras incompreensíveis tanto para um como para o outro, o “flipado” maître-d’hotel fez um gesto de enfado inoportuno, o velho deu-lhe duas cabeçadas e foi preciso chamar a ambulância, pronta para qualquer eventualidade, tal como a “El Dorado” tinha prometido. Neste caso, de resto, tratava-se de eventualidades, porque a mãe Paulina também tinha desmaiado ao ver o sangue e os dentes do maître-d’hotel saírem-lhe pela boca depois da cabeçada que o marido lhe tinha dado. Uma sorte, a ambulância, já com o el Ejecutivo dentro, ainda não tinha saído da mansão. A Carla precipitou-se para ajudar os enfermeiros, atarefados a embarcar a mãe e o maître-d’hotel, e acompanhou-os na sua viatura até ao hospital de Faro.
Felizmente, nessa altura já os noivos se tinham retirado à inglesa e saboreavam a noite de núpcias longe das lides do dia-a-dia. Os convidados despediram-se civilmente e retiraram-se. O Carlos d’Almeirim também se foi à vida, livre como um rouxinol ocioso, à espera de um novo dia para poder ensaiar os seus trinados. Levou com ele doces recordações, o perfume da Carla, o seu ardor, a suavidade da sua pele, e um extraordinário dó de peito que se lhe escapou por entre as pernas. Uma hora de sexo inesquecível.
Ficaram na mansão os serviçais, os bombeiros, que trabalharam até às oito da manhã para apagar o fogo de palha, e o pai, derrotado - “Tanto dinheiro gasto para nada!” -, sentindo, a súbitas, que fazia parte da multidão de injustiçados do mundo inteiro, ao reparar que estavam a chegar à mansão os carros da polícia enviados pela “El Dorado. «Estragaram-me a boda, provocam-me, e lá porque respondo à provocação com uma cabeçada, vem agora a polícia chatear o pessoa!? ... Meu Deus, isto aqui já não há justiça... se fosse nos meus velhos tempos... em Angola».
FIM
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