quinta-feira, 8 de abril de 2010

A Ocidente do Paraíso (41). Advertiu-me que este tipo de literatura na sua companhia estava proibido. Isso depois foi muito comentado.


O chilrear das aves antes das tempestades, e depois o cheiro da humidade dos matos nunca esqueceremos. Os mortos que ficaram renascerão com a nossa presença no amarelo do findar dos dias. Ficarão felizes com o cheiro da terra, antes e depois do feitiço enviado pela tempestade que faz do dia noite.
As tempestades quando surgiam metiam medo. De repente o céu escurecia, uma grande ventania surgia, e mais do que numa ocasião tivemos que nos pendurar nos suportes do tecto de chapas, senão voariam com a força do vento. Depois disto o capitão Valadas conseguiu que fossem instaladas estruturas metálicas na nossa caserna, dessas modernas. O nosso conforto melhorou. Ordenou também que criássemos arruamentos ladeados de pedras, e que se regassem com cal. O alferes Lopes comentou que o nosso capitão estava por engano aqui colocado, que seria melhor empregue numa companhia de engenharia.

Recebemos uma mensagem dirigida a todas as companhias que nos deixou estupefactos. Um major do DBI-Divisão Base de Intendência, perseguiam-no acusado de avultados desvios, e quem tivesse conhecimento da sua existência que o detivesse imediatamente. E que a última vez fora visto em Henrique de Carvalho (hoje Saurimo).
O alferes Lopes explicou-nos que era devido a isso que os cigarros, a cerveja e outros produtos começaram a rarear entre nós. Comentei, segundo a trilogia da obra de Hans Helmut Kirst que li, que quando os alemães estavam na frente russa, um tenente alemão da logística conseguia negociar caviar e outros produtos, e assim oferecer um banquete aos oficiais alemães em plena frente de batalha. O Lopes acrescentou:
- Todas as guerras servem para negociar, em todo o lado existem oportunistas que enriquecem à custa das tropas.
Terminou com outro episódio:
- Um sargento do DBI foi surpreendido no quintal da sua casa em Luanda, com grandes quantidades de bacalhau enterradas.
Claro que com estes episódios a nossa revolta e descontentamento aumentavam. Os comentários não cessavam:
- Nós aqui a sofrermos e os chicos a enriquecerem à nossa custa. Podem ficar com a nossa parte de Angola porque não a queremos.

Tinha alguns livros marxistas. Um deles era o Capital e outras obras de Marx e Engels. Coloquei-os na estante do nosso posto de rádio. Não ficaram lá muito tempo. O Valadas aparecia amiúde, observava o ambiente, e dava-nos ordens rigorosas de que não queria ninguém estranho no nosso ambiente. Isso causava-nos imensos transtornos com qualquer que fosse, como é evidente. Tratava-se de manter o sigilo das comunicações. Mas assim que viu os títulos dos livros na estante, perguntou de quem eram. Respondi que me pertenciam. Simplesmente sem quaisquer explicações retirou-os e levou-os. Advertiu-me que este tipo de literatura na sua companhia estava proibido. Isto depois foi muito comentado. Os alferes e furriéis quando tomaram conhecimento ficaram apreensivos. Devido a este facto e outras palermices, a relação com o Valadas esfriou.

Imagem: http://www.culturabrasil.pro.br/marx.htm

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