Uma das coisas que comecei a habituar-me no ser humano, é que ele raramente conta com o imprevisto. Tudo está devidamente programado, preparado, ensaiado, para que não hajam falhas. Mas a rotina, o cansaço e a fadiga dos materiais revelam-se os piores inimigos. Quando alguém nestas circunstâncias propõe alterações, normalmente consideram-no uma pessoa não grata. Porque é hábito o ser humano não gostar de alterações ao sistema de trabalho mecanizado. Prefere que o desastre aconteça para depois propor mudanças.
O Lavoura e o Cansadinho estavam em Luanda nas provas de exame com o meu apoio total, apesar de estarem fora dois pelotões com os seus dois operadores, outro estava de férias também em Luanda, os restantes estavam doentes com forte paludismo, de modos que só restava eu. De acordo com as circunstâncias tinha que aguentar sozinho o trabalho no nosso posto de rádio.
Os dois pelotões progrediram a pé do aquartelamento para mais uma missão de rotina. Consistia analisar em profundidade a segurança dos nossos domínios. Bater toda a zona, pois que haviam fortes indicações da presença de guerrilheiros. Durante todo o dia e noite nada de invulgar aconteceu. Mas o imprevisto veio de manhã às cinco horas. Adormeci encostado ao rádio. As condições de escuta eram muito boas:
- Alta 4, alta dois alfa chama! Alta quatro alta dois alfa chama!
Despertei por instinto, parecia-me que a voz provinha de um sonho:
- Alta quatro, alta dois alfa chama!
Não, não era nenhum sonho. A esta hora da manhã só podiam ser problemas:
- Alta dois alfa informa!
Contra todos os procedimentos das comunicações a mensagem era muito clara:
- Caralho! Informa o capitão que estamos cercados!!!
- Fica calmo, dá-me mais informações!
- Qual calma qual caralho estamos fodidos! Informa o capitão que estamos cercados! Não sabemos se vamos sair daqui vivos!
- Ok! Mantém alfa sierra! (espera)
- Vamos falar directamente, que se foda o código fonético!
- Ok! Aguarda!
O nosso capitão dormia. Dei socos violentos na porta que o despertaram como num pesadelo. Abriu e perguntou-me o que se passava:
- Meu capitão os nossos pelotões estão cercados!
- O quê?! Diz-lhes para aguardarem que já vou para aí!
O capitão chegou e mandou-me chamar o operador.
- Alta 2 alfa, alta quatro chama!
- Informa!
- O nosso capitão está aqui. Disse para chamares o alferes Lopes.
- Capitão, a nossa situação não é das melhores. Estamos cercados por todos os lados. Informe o batalhão para fazer uma RVIS (reconhecimento aéreo) e depois uma TEVES (bombardeamento aéreo.)
- Ok! Já vou tratar disso!
Imagem: cortesia do furriel Luís Filipe
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