Nas últimas aulas práticas com os rádios, o primeiro-sargento ensinava-nos a tirar os bigodes do assobio do som até obter uma boa sintonia. Na caserna, o Neves disse-me em segredo que se preparava para fugir. Não iria sozinho, outros o acompanhariam. Iria para o exílio. Convidou-me também para o acompanhar na fuga. Que a guerra estava perdida, era só ver o que estava a acontecer na Guiné. E como éramos antifascistas, o nosso dever era defender os povos das colónias, e não combater contra eles. Disse-lhe as razões porque não iria. Expliquei-lhe o que o Quitério me tinha dito. Fez-me prometer que guardaria segredo, e pediu-me a minha morada para depois me escrever. Em pouco tempo seríamos mobilizados para combater os patriotas das colónias, e até lá já estaria bem longe. Poucos dias depois não apareceu mais. Alguns sabedores comentavam: «Mais um que fugiu.»
Mais um amigo que nunca mais veria. A sua fuga estava consumada. De novo me senti só e melancólico. Vi que seria sempre assim durante o resto da minha vida.
Novamente fui atacado pela amigdalite crónica. Há vários meses que tal não me acontecia. A doença era devida à profissão de electricista, por causa do pó constante que me acompanhava, quando tinha que alargar as passagens das paredes de tijolos para colocar os tubos plásticos. O ambiente que me cercava estava sempre muito saturado de pó. Cheguei ao ponto de apenas passado um mês, voltar a infectar-me. O médico disse-me para fazer operação às amígdalas no Hospital do Trabalho. Tudo estava preparado para isso. Esperei quase quatro horas no hospital e ninguém me ligava. Esperei mais um bocado. Abandonei o local. Acho que ainda hoje devem estar à minha espera.
Consegui curar-me por meios próprios. Um deles foi justamente abandonar os ambientes de pó. Mas mesmo assim caí outra vez. Há três dias prostrado na cama da caserna, o ouvido doía-me. Mastigar ou engolir o que quer que fosse provocava-me fortes dores. Não conseguia comer nem beber. Já tinham dito ao aspirante o que se passava comigo. Ele não tomava nenhuma decisão. Pensei que devido aos acontecimentos anteriores me deixaria morrer. Perante a pressão dos meus colegas veio ver-me. Enviou-me para a enfermaria. Lá, verificaram que o meu estado de saúde merecia internamento. Enviaram-me para o Hospital Militar do Porto onde fiquei internado. Devido ao meu aspecto perguntaram-me porque razão só agora tinha chegado. Falar era-me doloroso. Mas pelo sim pelo não, preferi guardar silêncio devido às represálias que o aspirante exerceria sobre mim.
Permaneci lá cerca de duas semanas. O ambiente era militarizado claro. Não podia sair do local onde me encontrava. A única distracção que tinha era olhar pela janela e ver o pátio que havia em frente. Infelizmente não tinha ninguém com quem conversar. Como sempre as conversas habituais eram sempre sobre futebol. Confesso que nunca perdi tempo com coisas futebolísticas. Sempre considerei, e considero que é uma pura perda de tempo. Mas é necessário para os governos entreterem os seus povos e desviarem-lhes a atenção dos imensos problemas que um país tem. Afinal de contas é bom recordar que o futebol é um império empresarial. É necessário embrutecer as populações. E quanto mais futebol, melhor.
Canção do exílio. Gonçalves Dias
"Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá."
Imagem: Gonçalves Dias
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Gonçalves_Dias.jpg
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