quarta-feira, 21 de abril de 2010

A Ocidente do Paraíso (49). O fazendeiro veio de Luanda propositadamente para castigar alguns dos seus trabalhadores... à paulada.


Um contraste cómico era a nossa postura de disciplina em relação ao vestuário e aprumo, sempre impostos pelo nosso capitão. No pelotão de engenharia era: Farta cabeleira, camisa fora dos calções, botas com os atacadores soltos, enfim, cada um vestido de acordo com a conjuntura. O nosso capitão devia estar muito chateado com isto, mas não podia fazer nada. Inclusive, o pessoal da engenharia dizia que se os chateassem que se iam embora, e que chamassem outros, pois que estavam fartos de trabalhar e as condições laborais eram indignas.

Sabedores disto, os altos comandos preferiam fechar os olhos. Ao contrário da Quibala do Norte onde ficávamos no alto de uma montanha, aqui ficávamos num vale rodeado de montanhas. A vista geral circundante do posto de rádio era uma grande montanha. A minha cama situava-se junto à porta. Quando me sentava, olhava sempre para a mesma paisagem. Um local muito estreito e deprimente.
Entretanto, o meu pai enviou-me um pequeno rádiogravador. Um furriel emprestou-me uma cassete com uma música que não me cansava de a ouvir. Acho que a melodia se adequava exactamente à paisagem.

Tell her to reap it in a sickle of leather
(War bellows, blazing in scarlet battalions)
Parsley, sage, rosemary, and thyme
(Generals order their soldiers to kill)
And to gather it all in a bunch of heather
(And to fight for a cause they've long ago forgotten)
Then she'll be a true love of mine

Diga-lhe que colha isto com uma foice
(Guerra berra, enquanto brilhando em batalhões escarlate)
Salsa, salva, alecrim, e tomilho
(Os generais ordenam que os soldados matem)
E juntar tudo em um grupo de urze
(E lutar para uma causa eles esqueceram há muito tempo)
Então ela será um verdadeiro amor meu
(Simon & Garfunkel. Scarborough Fair.)
Tradução livre.


E sempre, ao escutar esta música, vem-me sempre à memória este local. As colinas e a sua vegetação.

Já tinha muitos livros para ler. Quase todos os alferes e furriéis carregaram malas com livros, para que o tempo que restava não fosse tão desagradável. Na generalidade eram romances de autores consagrados. Lia-os até à exaustão.

Um incidente veio quebrar a monotonia. O fazendeiro veio de Luanda propositadamente para castigar alguns dos seus trabalhadores... à paulada. Isto deixou-nos tão revoltados que nos apeteceu matar o homem, se não fossem os alferes que nos dissuadiram.
No outro dia os cães do fazendeiro ganiam de forma estranha. Um a um morriam em grande agonia. Morreram todos envenenados. Alguém lhes deu comida envenenada, e nunca se soube quem foi o autor ou autores. Foi sem dúvida uma vingança. Pensei que o nosso comando iria tomar medidas severas contra nós. Mas não, preferiram o silêncio, fingindo que não sabiam de nada.

Imagem: cortesia do furriel luís Filipe

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