quinta-feira, 8 de abril de 2010

António Setas. O casamento do Alvarenga. Trazia más notícias, «Aconteceu uma desgraça, senhor Alvarenga


Nas vésperas da boda, a “El Dorado” enviou uma equipa de especialistas ao solar a fim de montar os enormes toldos decorativos, que serviriam de abrigo aos convidados em caso de degradação súbita do tempo, dispor como deve ser as mesas e as cadeiras almofadadas e apresentar as amostras de tecidos finos que decorariam as mesas e os balcões frigoríficos transparentes. Com tais adornos foi proposta uma ementa que os Alvarenga aceitaram: acepites, aperitivos, punche, cassolette de bacalhau dourado, lombinhos de Miranda do Douro com cogumelos do bosque e uma “bearnaise”, fruta, pastelaria fina, moka e digestivos. A mãe Paulina foi a única a torcer o nariz, faltavam os camarões.

Como combinado, os convidados tinham encontro marcado no átrio da igreja de Sto. Antão, erguida no alto do monte com o mesmo nome, sítio famoso pela quantidade e singular beleza das suas amendoeiras, a descerem muito juntas pelo monte e a correr pela várzea que se estende até ao mar, numa paisagem tão linda que não havia ano que a terra não a namorasse e a vestisse de flores brancas, que se abriam em Abril.

Os Alvarenga, assim como a família da noiva, os Miranda, que tinham cedido de coração a sangrar e um sorriso amarelo nos lábios a pressões financeiras irresistíveis, iam em traje de cerimónia, smoking e vestido comprido de rigor. O restante povo, amigos, amigos dos amigos, penduras, penduras dos penduras, tal qual como pensavam ser, o melhor possível, com o que de mais requintado havia nos seus guarda-roupas, ou na loja em que se alugam trajes para essas ocasiões.

À hora marcada, nem minuto a mais, nem minuto a menos, todos entraram na igreja. E o pai Alvarenga, ao dar com o Nunes, o pai da noiva, ainda a um tiro de fisga da igreja, o que permitia gracejar, vira-se para ele e pergunta, «Então ó Nunes, você acha mesmo que eu sou mulato?» O Nunes lançou-lhe uma mirada de soslaio, sorriu e disse, «Ouça lá, Pedro, então você acha que eu sou ostrogodo? Olhe bem para mim, eu sou árabe! Portugueses?... o que é isso?! Misturas, só misturas». Riram-se da piada e entraram na casa de Deus.

Missa cantada.
No momento em que o célebre Carlos d’Almeirim entoou as primeiras notas da Missa Solene de Armando Leça, obra de grande porte e indiscutível beleza que ninguém conhecia, a emoção calou a boca a muito boa gente que, de suspeitosa índole, esperava um altíssono fiasco à antiga portuguesa. Emoção essa que não se ficou pela missa, pois só atingiu os píncaros quando, depois de consumado o casamento, o famoso tenor atacou, maneira de dizer, porque de facto acariciou uma inesquecível Ave Maria de Gounot. «A missa mais bonita de toda a minha vida», confessou o pai Alvarenga, quase a chorar, ao sair da igreja.

O serviço de acepipes e aperitivos a abrir a boda começou à roda das seis da tarde, e já no terraço alto - o termo alto, servindo para o distinguir do terraço baixo, em frente à porta da cozinha, nas traseiras -, nos vastos relvados e à volta do lago artificial, atravessado pela ponte romântica, sem os cisnes, que tinham fugido aos primeiros latidos indignados do Nero, o idóneo pastor alemão do pai Alvarenga, havia um mundo de gente entretida numa cavaqueira que se desejava descontraída, mas não era, porque o cenário montado pelos homens da “El Dorado” impunha uma surdina.

Senão imagine-se: três toldos que só vistos nos filmes de Cecil B. De Mille, tipo Quo Vadis, a sobrepujar dezenas de mesas recobertas de toalhas bordadas no mais puro linho do Minho, louças de finíssima porcelana, talheres de prata, copos de tamanho decrescente e alinhados, compondo uma espécie de flauta de Pã, guardanapos artisticamente dobrados abertos em leque, e grinaldas de balsaminas, dálias e isabel-entre-sonhos a realçar a alvura do linho.

Por toda a parte flores e mais flores, em grandes jarros, a separar as mesas, a esconder os suportes dos toldos, rosas solitárias debruçadas numa vénia a iguarias mais requintadas, expostas nos balcões frigoríficos transparentes e nos aparadores, e, erectos como girafas surpreendidas pelo fotógrafo à cata de folhas nos altos ramos das árvores, camisa branca, laçarote cor-de-vinho, colete e calças pretas, cada um no seu devido lugar, os empregados de mesa, que não destoavam do maître-d’hotel, comprimido num smoking azul-petróleo. Ponderado pois era o tom da conversa.

Servidos o vinho do Porto, o punche e os aperitivos, coisa de uma hora mais tarde já só havia cerveja, sumos e batatas fritas. Posto ao corrente do facto, o pai Alvarenga mandou chamar o responsável da “El Dorado”, el Ejecutivo, e pediu explicações. Este assegurou que estava tudo a chegar, vinhos, punche, aperitivos, digestivos e molhos para acompanhar as carnes. Era uma questão de minutos, tudo seria resolvido, estavam a caminho.

Entretanto, os noivos e uma parte da família tinham-se sentado à mesa de honra a conversar, e prolongava-se a sessão de fotografias na ponte romântica. Os minutos voaram a grande velocidade, enquanto que de bebidas e molhos, nenhuma novidade. Às tantas, viu-se el Ejecutivo quase a correr em direcção ao velho Alvarenga.

Trazia más notícias, «Aconteceu uma desgraça, senhor Alvarenga, a nossa carrinha teve um acidente e perdeu-se tudo o que trazíamos para o banquete», fez uma pausa para respirar e continuou, «não se preocupe, telefonámos para a Central e já está outra a caminho». «Mas há vinho ou não há vinho?», perguntou o velho, «Viño há, mas não lhega...», «Então você não disse que ia chegar?!», «Si...», «Então podemos começar a jantar». Sem dar tempo a mais conversas fez um gesto amplo, o que chegou para que toda a gente acorresse às mesas e se sentasse à espera dos petiscos. Contrariado, o maître-d’hotel deu as suas ordens.
(continua...)

Imagem: http://bertini.files.wordpress.com/2007/08/images1.jpg

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