sexta-feira, 23 de abril de 2010

A Ocidente do Paraíso (51). E os furriéis e alferes passaram a ficar envergonhados de lhes darem ordens.


Estávamos mais próximo de Luanda. A estrada era asfaltada, e além do nosso aquartelamento não se divisava vivalma. Convictos que aqui passaríamos o resto do tempo, até que nos rendessem, com um merecido descanso, a realidade foi bem diferente. Era operação atrás de operação, o que nos surpreendeu. O pessoal começou a ficar revoltado.
Neste posto de rádio tinha um pequeno compartimento só para mim. Afastado do barulho da caserna, já dormia e descansava com tranquilidade. Tinha finalmente a minha privacidade.
Várias vezes da Bairrada, em Portugal, chegavam chouriço, presunto e afins, incluindo o vinho. Fazíamos grandes patuscadas, graças ao Lavoura que era natural da Bairrada e do Cansadinho que era de Lisboa.

O Lavoura e o Cansadinho eram soldados telegrafistas. Mas tinham habilitações para o CSM, Curso de Sargentos Milicianos. Podiam muito bem serem furriéis. Mas devido a não terem entregue a papelada a tempo, ficaram na condição de soldados. Apesar disso continuavam a estudar. Quando havia os períodos de exames em Luanda, autorizavam-nos a sair, e quando regressavam vinham cheios de contentamento, porque os exames lhes correram bem. «O sétimo ano já está no papo.» - Diziam. Uma situação nova surgiu... já tinham habilitações para oficiais milicianos.

E os furriéis e alferes passaram a ficar envergonhados de lhes darem ordens. Tinham mais habilitações que os furriéis, e estes sentiam-se como que inferiorizados. Os alferes tratavam-nos como iguais. Mas não era só isto, havia mais. O Lavoura era das transmissões de engenharia e o Cansadinho de infantaria. O Cansadinho tinha gordura a mais, e não suportava carregar o rádio às costas fazendo jus ao seu nome. O Lavoura oferecia-se sempre para o substituir. Num espírito de solidariedade passámos todos a fazer o mesmo.

Depois de uma grande caminhada em direcção a um acampamento de passagem dos guerrilheiros, onde alguns de nós não aguentavam a passada, incluindo eu, senão vejamos: O rádio era pesado, cerca de dez quilos, um Racal TR28 de campanha, com um saco cheio de rações de combate, garrafas plásticas com água de reserva, cantil, um cobertor, um pano de tenda e quase sempre um livro, as munições, e claro, a G3. Imaginem este peso durante uma longa caminhada. A certa altura tudo pesa como chumbo. Deixei-me cair e tirei o rádio das costas convencido de que o alferes iria fazer uma paragem. Mas nada disto aconteceu. Alguém gritou:
- Meu alferes! Meu alferes!
Ele olhou mas não parou, marimbou-se:
- Quem quiser ficar que fique!
Caramba, só de pensar que iríamos ficar por aí abandonados, dava-nos tal força que esquecíamos o cansaço. Corríamos com o que restava das nossas forças e juntávamo-nos aos nossos companheiros.
Estacionámos num local que parecia ser o mais seguro, densamente rodeado de vegetação. Quando alguém falava mais alto, o alferes Lopes impunha silêncio, e fumar não era possível. Porque os sons na floresta são perfeitamente audíveis, e o fumo do cigarro sente-se a distância considerável. Assim, como de repente se as aves levantassem voo, isso significa que alguém, ou algo estava nas proximidades.

Imagem: cortesia do furriel Luís Filipe

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