Um dia
destes, há muito pouco tempo, uma agente da polícia do município de Ustaritz,
em França, entrou na escola de Saint Vincent, identificou a pequenina estudante
Léa, que tem somente cinco anos, e levou-a para a esquadra vizinha onde a
manteve durante algum tempo até lhe permitirem regressar às aulas, da parte da
tarde, perante a estupefação de colegas, professores e director do
estabelecimento. Razão da diligência: os pais de Léa devem 170 euros à cantina
da escola, gerida pela Câmara de Ustaritz, e por isso o presidente do município
ou “maire” proíbe a garota de almoçar no estabelecimento.
Passa-se
isto na Europa das infindáveis virtudes, da interminável capacidade para julgar
os outros, sobretudo quando se trata de direitos humanos e de liberdades
cívicas, esta Europa farol inquestionável da democracia.
Nas aulas
desse dia, os professores tentaram apagar o trauma gerado nas crianças, isto é,
procuraram explicar o inexplicável porque na sua cada vez mais perseguida
profissão (na Europa) ainda acontecem coisas para as quais não estão
preparados; o director confessou aos jornais a revolta pela utilização de
crianças como “reféns”; o pai de Léa quer saber quem se responsabiliza por um
processo em que a sua filha foi levada da escola “manu militari”. O presidente
da Câmara alegou que os pais de Léa foram notificados várias vezes da dívida
associada à filha sem que tenham respondido pelo que, não o disse mas extrai-se
da sua atitude, não havia outro remédio senão prender a garota, mesmo tendo
cinco anos, para que eles dessem a cara indo busca-la à esquadra.
Se pensam
que este caso é único na virtuosa Europa, uma ocasional manifestação de mentes
perturbadas pelos inconvenientes que uma dívida de 170 euros provoca nos
apertados orçamentos municipais, estão muito enganados. Também há pouco tempo,
em Portugal, crianças foram proibidas de comer na cantina de uma escola porque
os pais tinham dívidas que já somavam 60 euros. E voltando a França, agora à
região de Yvellines, um “maire” admirador do ex-presidente Sarkozy manifestou
vistas mais largas tentando prevenir em vez de ser obrigado a remediar: emitiu
uma normativa que proíbe crianças que tenham pelo menos um dos progenitores
desempregado de frequentar as cantinas e os centros de tempos livres das
escolas do município. É o que se chama cortar o mal pela raiz. Antes a fome que
as dívidas, antes o dinheiro que as pessoas, antes desempregados que
caloteiros, quem não tem dinheiro não tem vícios, ainda que seja o de comer. O
maior pecado que pode cometer-se no mundo que se considera o centro da
civilização é, para que ninguém esqueça, faltar ao respeito ao dinheiro.
Como se não
bastassem os cortes orçamentais na saúde e na educação nos países da União
Europeia, como se não passe pela mente de governantes com cérebro de folha de
Excel obrigar de novo a pagar o ensino público, como se a escola não fosse cada
vez mais tratada como um luxo
com
inerência discriminatória, então que se acrescentem a fome e as restrições
económicas para que as crianças oriundas dos meios mais desfavorecidos deixem
de vez o ensino, ainda que para tal tenham de passar pela esquadra e viver logo
aos cinco anos a primeira experiência de potencial criminoso.
Pensemos no
drama da pequena Léa. Não estamos já perante casos de má governação, injustiça
ou estupidez burocrática. Somos vítimas de mentes transviadas que perderam o
mais elementar senso de humanidade.
Jornal de Angola
ANGOLA24HORAS.COM
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