Tema: Cabinda à Busca de si Mesmo – Os
Resultados do Memorando de Entendimento de 2006
Orador: José Marcos Mavungo
(Activista dos Direitos Humanos e Membro da Sociedade Civil de Cabinda)
0. Introdução
Minhas Senhoras, meus senhores, amigos,
Com uma saudação muito cordial aos participantes
desta Mesa Redonda e as maiores felicitações aos seus promotores, congratulo-me
por poder estar aqui hoje, não obstante o clima de intolerância política em
Angola (onde o debate sobre Cabinda continua a ser um assunto proibido em
órgãos de comunicação oficial), para dissertar sobre o tema: Cabinda à Busca de
si mesmo – Os Resultados do Memorando de Entendimento de 2006.
Como tema, podemos considerá-lo no centro das
preocupações dos organizadores desta Mesa Redonda, relevando de maneira
particular, a afirmação do Dr Francisco Kapalu Ngongo, segundo a qual «Angola
se encontra numa encruzilhada: ou aborda os actuais dilemas e conflitos
latentes, do ponto de vista político, social, económico e cultural, o que
poderia aprofundar e garantir uma paz duradoira e um desenvolvimento
sustentável, ou ignora os indicadores de alerta de existência de conflitos, e
prepara um futuro preenche de apreensões».
Assim, em confronto com a realidade do território de
Cabinda, a manutenção da actual relação explosiva do Estado angolano com a
população de Cabinda será sempre um verdadeiro barril de pólvora, pronto a
explodir. À luz desta situação, a sociedade Civil de Cabinda sente sobre os
seus ombros o peso enorme dos desafios do nosso presente. Por isso, tinha que
honrar os meus compromissos, já muto antigos, de estar aqui para vos falar do
processo de Paz para Cabinda.
Nesta perspectiva, o percurso desta reflexão vai
começar por abordar os contornos do conflito e os esforços empreendidos até cá
para sua resolução. Em seguida, passarei em revista o Memorando de
Entendimento. E, por fim, examinarei as perspectivas de uma paz duradoira para
Cabinda. A conclusão nos dará os resultado da reflexão e recomendações.
1. O Conflito em Cabinda: Origens e Esforços de
Resolução.
A «questão de Cabinda», não surge, desde o princípio
e de uma vez por todas, como um problema socioeconómico, ou como o estrénuo
contraditor do Direito internacional. Ao contrário, a sua produção, no que tem
de essencial, se constitui problemática em torno do direito dos Povos a dispor
de si mesmos; pois se é que a "Carta Colonial" fazia uma distinção
nítida entre Cabinda e Angola, sendo aquele colocado sob o no. 39 Estado a
descolonizar e este sob o no. 35, como explicar que Cabinda seja uma excepção
às consequências lógicas advindas deste facto durante o processo de
descolonização?
Mais do que um problema jurídico, a tensão entre
Cabindas e Angolanos se evidencia também como a resultante de uma identidade
imposta pela forca das baionetas, e não a resultante do consentimento mútuo
entre ambos os povos, o que levanta o problema da legitimidade da tal
imposição.
A maneira de assumir esta problemática pelas partes
se cristalizou em expressão eloquente de um conflito e de uma ruptura, a
"questão de Cabinda". Trata-se duma questão, como dizia Francisco
Luemba, cuja génese situamos "na sua história remota, enraizando - se nela
e apreendendo as metamorfoses que sofreu ao longo da sua evolução histórica
". Três factos fundamentais marcaram esta evolução:
• O Especificidade de Cabinda, que advêm da
história – muito antes das invasões dos bakongo, já o território era habitado
por povos banto, que, em contacto com a terra e os outros povos que afluíram a
região ao longo da história, acabaram por se constituir em três reinos –
Macongo, Mangoio e Maloango - com uma identidade histórica própria e uma
vontade de vida em comum.
• O Tratado de Simulambuco e a colonização
portuguesa: com a assinatura do tratado a 1 de Fevereiro de 1885, Cabinda
torna-se Protectorado português. O tratado aparecerá aos Cabindas como garantia
da sua independência, da sua soberania e identidade, e da unidade e integridade
do seu território; um fundamento inequívoco para a sua autodeterminação e
independência. Mas, logo após a assinatura do acordo, as expectativas dos
Cabindas se traduzirão em ilusão com a implementação da política colonialista,
mesmo se a Constituição Portuguesa de 1933, que vigorou até a descolonização,
fazia uma distinção nítida entre Cabinda e Angola .
• Os Acordos de Alvor, assinados a 15 de
Janeiro de 1975 , nos quais as partes estipularam no artigo 3º. in fine que
Cabinda é parte integrante e inalienável do território angolano, sem o prévio
consentimento dos autóctones do Enclave. No dizer de Francisco Luemba, o "
pós-Alvor seria praticamente o pós-Simulambuco: esperanças frustradas e dias
amargos, de tristeza, luto e dor – no mais absoluto isolamento e no mais completo
abandono" .
O desastre da descolonização portuguesa, em especial
a assinatura dos Acordos de Alvor, marcará a etapa dum conflito de grandes
proporções, com a ofensiva de 8 de Novembro de 1975 e o eclodir de
cenários de teatro estratégicos que atingiram o patamar de guerrilha, opondo as
tropas governamentais de Luanda e a resistência armada de Cabinda (organizada
no seio da FLEC – Frente de Libertação do Enclave de Cabinda).
Com a escalada de violência, a maioria dos Cabindas
refugiou-se sobretudo no Congo –Brazzaville, Congo-Kinshasa e Gabão –
Libreville. A intensidade do conflito provocou a degradação da situação dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais, destruiu o tecido social e as
infra-estruturas económicas, ocasionando a pobreza generalizada e o constante
clima de repressão e de terror.
Note۔se que, muitas vezes, em simulações, os actuais
governantes de Cabinda têm fingido encontrar-se com a FLEC, as populações e as
elites de Cabinda, e brincado de engrandecê۔los e escutá۔los com boas palavras,
para depois mostrar lhes os limites da sua política para Cabinda.
Por exemplo, logo apos independência de Angola, a 16
de Fevereiro de 1976, Agostinho Neto assume o compromisso de solucionar o
problema de Cabinda pela via do diálogo . A 28 de Fevereiro de 1976, Agostinho
Neto e Mobuto Sese Seko reuniram-se em Brazaville, sob os auspícios de Marien
Ngouabi. O primeiro, depois de coagir o segundo a renegar a FLEC e a FNLA e a
reconhecer a angolanidade de Cabinda, proclamou por sua vez a especificidade de
Cabinda (o particularismo de Cabinda) e prometeu solenemente encontrar para
esta uma fórmula de administração. Mas nada foi feito até hoje.
Além de vamos conversar!- de Fevereiro de 1991, o
presidente José Eduardo dos Santos considerou, em Fevereiro de 2002, que
Cabinda seria também " uma questão a tratar no âmbito da reforma
constitucional". Assim será possível "saber o que é que os angolanos
todos querem, qual a sua opinião sobre Cabinda. "Trata-se de uma consulta
popular dirigida a todos os angolanos", afirmou o Presidente angolano.
Acresce que o Presidente de Angola prometeu aos Cabindas, em Setembro de 1992,
negociações destinadas a determinar se Cabinda é ou não Angola.
Passaram anos, e a realidade provou que as
hipotéticas negociações prometidas a contragosto não passavam de simples
oportunismo, manobra de diversão ou manipulação. Certo, a história da
luta do povo de Cabinda registou canais de diálogo com o Estado angolano, mas
os resultados dos encontros se revelaram pouco palpáveis, após tantos anos de
"guerra-contínua" em que o Poder político dominante apenas procurou
mobilizar uma grande máquina de guerra para esmagar os oponentes.
A história da luta do povo de Cabinda está cheia
destes encontros desde os anos 1984: Negociações de Sáfica, entre 1984 e 1985,
que culminaram com um cessar-fogo a 16 de Fevereiro de 1985 com as FAPLA, sob a
mediação cubana; De Junho a Julho de 1992, O Governo angolano enceta contactos
com a FLEC de Luís Ranque Franque e a UNLC de Lumimgu Gimby Carneiro, tendo chegado
a um acordo de negociações que deveriam ter lugar em Genebra; a 25 de Fevereiro
de 1994, Eduardo dos Santos encontra-se com Nzita Tiago, propõe um cessar-fogo
«para iniciarmos negociações conducentes a uma solução do diferendo que nos
opõe sobre o território de Cabinda»; Negociações entre a FLEC Renovada e o
Governo Angolano, nos anos 1995 e 1996, que acabarão por estender-se à
FLEC/FAC.
Em todos estes encontros, a controvérsia da paz está
sempre ligada a jogos divisionistas que em todos estes anos serviram aos
dirigentes de Luanda. E além de que o principio do respeito da Constituição é
em todas estas negociações ilegitimamente posto como absoluto, acontece quase
sempre que o governo angolano procura expedientes e pretextos tais como a falta
dum interlocutor válido e a desunião dos Cabindas. Por todas estas razões, os
encontros e negociações organizadas até cá não deram avanços em direcção à Paz.
Aparentemente, a sociedade civil de Cabinda acordou
tarde para os esforços de pacificação de Cabinda. Pelo menos para o seu
envolvimento como instituição organizada; pois só foi em 2003 que se criou uma
instituição da Sociedade Civil, a Mpalabanda - Associação Cívica de Cabinda,
cuja vocação é, entre outras, participar dos esforços tendentes à encontrar uma
paz duradoira para Cabinda.
Nos seus compromissos, a Mpalabanda tentará
responder à urgência da hora presente (do nosso «kairós»), do contexto epocal:
alertará o mundo sobre a existência do conflito em Cabinda e pedirá aos
beligerantes a cessarem as hostilidades e iniciarem negociações conducentes a
uma solução do diferendo; esforçar-se-á por ser a ponte entre o povo e o
político; tomará parte nos encontros de Helvoirt, na Holanda, em esforço de
aproximação entre as forças da resistência cabindesa; marcou presença no
encontro preparatório da Inter – Cabindesa (Outubro de 2009), em Paris/França,
sob os auspícios do Reverendo Pastor Daniel Ntoni-Nzinga, em vista a uma
plataforma negocial do conflito; e tentará monitorar os direitos humanos (o
corolário da questão de Cabinda), publicando três relatórios - «Um Ano de Dor
em Cabinda» (2003), «Cabinda, Reino da Impunidade » (2004) e «Cabinda, entre a
Verdade e a Manipulação» (2005).
Mas mesmo essa boa-vontade fracassará. A maldade em
tudo isto provém dum facto radical: não haver uma vontade seria do governo de
Luanda em se encaixar no próprio destino do povo de Cabinda. E o Memorando de
Entendimento para a Paz e a Reconciliação da Província de Cabinda é um exemplo
desta perversão.
2. O Memorando de Entendimento
Os princípios fundamentais do "Memorando de
entendimento" consagram o respeito da lei Constitucional e as obrigações
legais em vigor em Angola; afirmam a aceitação indubitável, pelas partes, pelo
facto que Angola é um Estado unitário e indivisível segundo a lei; afirmam que
as partes reconhecem que, no contexto nacional da República de Angola, a
Província de Cabinda tem uma especificidade que obriga que, no âmbito das
disposições legais sobre a administração das províncias, seja adoptado "
um estatuto especial" para a Província de Cabinda.
As partes assentaram em que se chegou à paz e à
reconciliação nacional em Cabinda (a Paz veio para ficar), desenvolvendo um
discurso sobre "triunfo da vitória sobre todos aqueles que ainda resistiam
ao acordo de Namibe. Para o efeito, mobilizaram o apoio da massa à sua cruzada
contra os espíritos reticentes e os governos liberais, com o apoio da poderosa
imprensa estatal, que dota o acordo de uma natureza arquitectónica bem
delineada. Mas a questão de Cabinda não é assim tão simples. O campo de batalha
se prolonga até hoje, e provavelmente por um período longo e ainda sinuoso.
Reconheço o cuidado com que as partes do memorando
tentaram analisar a questão de Cabinda, ao reconhecerem a especificidade do
povo de Cabinda, sinal de que o tema interpela o intelecto humano, em
particular aquele do político. Acho, porém estranho, que, depois de discussões
sobre o assunto, tenham ignorado, entre outros, os seguintes aspectos: o
objecto principal (protectorado português) da "especificidade" do
território de Cabinda; o significado político e jurídico do Tratado de
Simulambuco, o Protectorado português; e o erro dos Acordos de Alvor, o que
teria permitido abordar as verdadeiras diferenças entre Angola e Cabinda.
A palavra "especificidade" de um povo está
registada, em bons dicionários, como significando o mesmo que
"particularidade", "identidade" que condensa uma metafísica
à altura do intangível, tendo encontrado efectivação histórica nos diversos
estádios culturais vividos por esse mesmo povo. Ora, no caso de espécie, não se
pode falar do povo de Cabinda sem referência à sua alma e história, em especial
das condições da sua integração na nação Portuguesa e dos seus direitos como
povo.
Disto segue-se que a aporia no contexto do Memorando
de Entendimento é patente: a especificidade do povo de Cabinda é proposta como
absoluta para a paz, mas o fundamento aduzido para a natureza do povo, que se
pretende defender, é excêntrico. De recordar que, em Julho de 2003, o
presidente José Eduardo dos Santos declarou-se sensível às especificidades
históricas de Cabinda e às «reivindicações básicas» . Porém, a «Vox Popoli» não
revela em absoluto aos caudilhos de Luanda o direito de que o povo de Cabinda é
portador como povo, nem qualquer disposição geral ou particular que defina o
que virá a ser a nova personalidade política, jurídica e administrativa para
Cabinda.
Deste modo, ao impor o princípio de só existir um
povo, o povo angolano de Cabinda ao Cunene, e de fazer do modelo de integração
a única base de diálogo, o pacto firmado a 1 de Agosto no Namibe é, como dirá
Carlos Pacheco, «erguido sobre as tábuas ideológicas da arrogância centralista
e do desprezo pelos oponentes» .
A este respeito, importa sublinhar que o Governo
angolano tomou sempre muito gosto pela lógica de esmagar os oponentes pela sua
força bruta. Por esta razão, temos a incorporação das forças afectas a Bento
Bembe nas Forças Armadas Angolanas (FAA), de entre as prioridades do acordo. A
aspiração imediata do regime era assegurar essa força para, apoiado nela,
chegar à uma vitória militar sobre aqueles que ainda se constituiriam em
«estado de guerra» contra «a vontade das autoridades de Luanda».
A fragilidade do acordo reflecte-se também no
ostracismo a que foi votado: a expulsão de instituições e personalidades chaves
e prestigiadas ligadas ao próprio processo de paz, ou que, pelo menos se
prontificaram a oferecer os seus préstimos ao processo. Mas a expressão mais
eloquente deste ostracismo está sobretudo no facto de o Líder Supremo ter
confiscado para si o monopólio da «questão de Cabinda» - como uma espécie de
segredo de estado – e exclui a possibilidade de conferir ao povo de Cabinda de
se pronunciar sobre o seu destino. Mas fá-lo como atitude de necessidade, e não
com a cegueira dogmática que impele os outros. Sendo uma herança colonial a
conservar, o Governo angolano considera que tudo quanto pudesse ultrapassar os
impasses de um diálogo autêntico sobre Cabinda era uma afronta aos próprios
deuses do actual figurino sociopolítico e jurídico herdado de uma
descolonização desastrosa.
De referir a problemática relacionada com a pessoa
que negociou o acordo pelo lado de Cabinda. A faceta obscura das peripécias da
sua evasão da Holanda, depois que foi detido na sequência do mandato de captura
internacional expedido pelas autoridades norte-americanas, teve um efeito fatal
sobre o processo de paz para Cabinda. Procurando tirar vantagens da situação,
como o navegante à vela, perito em ventos e suas surpresas, o Governo angolano
conseguirá arrastar Bento Bembe pelas espirais do seu discurso demagógico e
inevitavelmente forçado a seguir adiante, abraçando a sombra do «único
interlocutor válido de Angola no dossier Cabinda».
Notemos que o Memorando de Entendimento para a paz
em Cabinda sofre duma contradição interna desde o seu nascimento – dum lado o
acordo se apresenta como a libertação da última escravatura, aquela do longo
conflito pelo Estatuto especial; mas também em reacção contra os direitos e
liberdades fundamentais a paz do Namibe estendeu-se a considerações que
interditam opinar sobre ela, instaurando deste modo uma nova era de
perseguições republicanas contra todos quantos ousassem questionar as suas
clausulas.
O maior escândalo provocado pelo regime a este
respeito é o drama dos activistas dos direitos humanos em 2010: foram presos
sob pretexto de terroristas por denunciar atropelos à justiça, à liberdade e
aos direitos das pessoas e por participarem no processo de Paz para Cabinda,
num tempo em que o próprio conceito de denúncia das violaçõs dos direitos
humanos e de defesa duma cultura de paz constituem deveres de todo o cidadão,
e, por conseguinte, devem merecer o apoio e a protecção dos poderes políticos.
Por outro lado, as partes nas negociações de Namibe
assumiram o compromisso de criar condições para acelerar o desenvolvimento de
Cabinda, permitindo que as suas populações desfrutem de todas as suas
potencialidades, tendo em conta o pressuposto da paz, estabilidade,
reconciliação e democracia. Porém, nos termos do no.1, do artigo 7, da Lei n. 26/10
de 28 de Dezembro, o executivo angolano acabará por decretar a cessação da
transferência mensal dos recursos financeiros ( dez porcento da receita
petrolífera) a favor do Governo Provincial de Cabinda, que se vinha realizando
nos termos da Resolução no. 11/92, de 21 de Outubro. Ademais, a Província de
Cabinda, que ocupou o segundo lugar na atribuição do Orçamento Geral do Estado
em 2007, aparece hoje no 10º. lugar.
Daqui vê-se claramente, um pseudo processo de paz
que viciado por preconceitos ideológicos e interesses petrófobos, se estrutura
nas busca de uma síntese em torno do status quo, deixando espaço a uma visão
irrealista da "questão de Cabinda". Donde a escassa aceitação popular
do Memorando de Entendimento; a afirmação de um activismo oposicionista, que
condenou e rachou o acordo como uma imposição arbitrária de Luanda; e o
recrudescimento dos confrontos armados no interior de Cabinda.
Assim, Angola deixa a situação na delonga e investe
na solução militarista, convencida, com razão – na sua própria lógica belicista
– que o tempo trabalha a seu favor; esquecendo – se, certamente, do efeito
boomerang. Aliás, a história nos ensina que a força não faz o direito, e que
guerrilheiros quase nunca são derrotados, que no longo prazo esses «Davids»
derrotam «Golias» pela estratégia de saturação.
Hoje, a paz em Cabinda é uma paz dos cemitérios, dos
rendidos e mutilados (físicos e espirituais). O diagnóstico da violência e da
cultura do medo em Cabinda se traduz numa psicose colectiva, cada um dos
Cabinda tem uma história de terrorismo de Estado, particular, para contar sobre
brutalidade do regime em Cabinda contra as populações indefesas: prisões,
violações, espancamentos, o assassinato e a deportação de um familiar,
interdições de ir às lavras e à caça, de legalizar associações de direitos
humanos ou de organizar manifestações.
A sinfonização (menção ao sinfo) e militarização do
espaço vital dos Cabindas continua atingindo o aparelho judiciário, estando
este corroído pelo autoritarismo do poder político, donde resulta a frequência
de prisões arbitrárias e assassinatos. Exemplo cabal disso: no dia 12 de
Dezembro de 2011, o corpo de António Zau foi encontrado inerte na mata com
sinais visíveis de tortura, pelo simples facto de ter ousado ir à lavra,
desobedecendo assim as interdições das instâncias superiores; Venâncio Chicumbo
e Cornélio Sambo estiveram sob detenção no Comando da Região Militar de Cabinda
durante dois meses, entre Setembro e Novembro de 2012, pelo simples delito de
lerem e distribuírem panfletos que condenavam as eleições em Cabinda.
Por outro lado, o salto extrajudiciário dado pelo
Governo, aquele que accionou a ilegalização da Mpalabanda em Julho de 2006,
inscreve-se nesta lógica do autoritarismo do poder político sobre a razão
jurídica – pois o Tribunal Provincial de Cabinda não teria ousado formular a
hipótese da extinção desta associação, se na consciência do Juíz não tivesse
encontrado a sua realização viva como sendo uma ordem das instâncias
superiores.
No plano socioeconómico, o desenvolvimento tão
propalado pelo regime não passa do decalque do Plano Calabube , indevidamente
gerido pelos sucessivos governos que passaram por Cabinda desde os anos
noventa. Com efeito, mal um governador chega a Cabinda cai adormentado em
negócios locais e aplica-se em aterrorizar pela força das baionetas os
negociantes e activistas locais que se manifesta inconformados com
obscenidades, torpezas e a má gestão dos planos de desenvolvimento local.
O mal-estar que provoca esta situação é enorme. A
indústria petrolífera gera milhões em Cabinda; mas a maioria da população vive
em pobreza abjecta. Cabinda está asfixiado, com uma rigorosa tempestade que
causa muita crise; obstáculos ao seu desenvolvimento industrial e comercial; os
serviços de infra-estructuras básicas de água potável, electricidade e
saneamento mal funcionam; e o empobrecimento da população autóctone. O
empresariado local encontra-se empobrecido pela irracionalidade duma governação
que o discrimina. O sector de saúde queixa-se de quase tudo (material gastável,
medicamentos para primeiros socorros, soros, etc.), para além do salário de
miséria dos agentes de saúde.
A nível da comunidade internacional, como diz Orlando
Castro: «"a passividade também é plena, para além de atávica, Só Manuel
Monteiro teve a coragem de dizer em relação a Cabinda que " no plano das
relações internacionais reina o primado do cinismo" e que " as
considerações de justo ou injusto dependem das épocas, das circunstâncias e até
dos interesses materiais"».
Nota-se aqui a dimensão histórica e cultural da
questão de Cabinda, ao seu enredamento nos interesses sociais, políticos e de
poder, o possível carácter alienante da petro-cultura como sintoma da patologia
das instituições sociopolíticas dos nossos estados minados pelos interesses petrolíferos.
No passado, era a escravatura colonial, hoje não há mais negros para
comercializar no mercado de Malembo, mas há o petróleo de alta qualidade, que
jorra profusamente das plataformas de Cabinda.
É, assim, que o petróleo alimentou em Angola todos
os vícios políticos possíveis: belicismo cultural, corrupção e falta de
transparência na gestão da coisa pública, despotismo e estratégias escudando no
simulacro do diálogo e de uma paz.
Donde, a necessidade superar os obstáculos e as
contradições do memorando de Namibe.
3. Para Além do Memorando: Exigências de uma Paz Duradoira
Se é que a questão de Cabinda surgida em 1885
aquando da conferência de Berlim não encontrou solução até hoje, é porque as
políticas da sua gestão ao longo destes cento e trinta e oito anos às quais ela
se ataca permaneceram sempre pobres ao reprimirem o testemunho da consciência
moral, revelando-se assim incapazes de cultivar a cultura da paz e, por
conseguinte, de fazer justiça às populações de Cabinda.
O discurso político nunca esteve em condições de ir
ao encontro das disposições legítimas das populações de Cabinda ou, pelo menos,
de instaurar uma sociedade democrática e de direito, na qual se respeita o
Direito e as liberdades fundamentais, se aceita opinião contrária e a identidade
do povo de Cabinda.
O diálogo tão propalado pelo regime desde a acessão
de Angola à independência tem sido duramente abalado pela violência política -
onda de detenções, fuzilamentos, torturas e desaparecimentos com que o regime
tenta combater toda a oposição à sua politica em Cabinda.
O governo angolano apresentou a sua mensagem ao
mundo, parecendo de certa forma fechá۔la nos estreitos limites dos seus
interesses políticos e económicos em Cabinda. É o conflito do direito com o
político, num ser político sacudido entre os apetites suscitados por um
labirinto rico em matérias primas, sobretudo o petróleo, e as exigências do
humanismo jurídico. É por isso que no Memorando de Entendimento de 2006, assim
como nos Acordos de Alvor, a sociedade cabindense, de facto, desnudou-se
totalmente da «sua soberania como povo».
Hoje, o conflito é uma realidade. O presente malogro
do povo de Cabinda tal como se constituiu desde a assinatura dos Acordos de
Alvor – e mesmo, em certa medida, desde a colonização portuguesa – provoca a
necessidade de um novo figurino socio-politico para Cabinda que todos aguardam,
uns com angústia, outros cheios de esperança.
As politicas seguidas até cá não servem, é
necessário outra geração de políticos e de politicas, que pensa mais no bem das
populações de Cabinda do que no seu próprio bem, que abandona as políticas
centralistas-estalinistas; que reconheça a legitimidade das forças da
resistência de Cabinda; que abdica de restrições na mesa de negociações; e que
se engaje num processo de paz para Cabinda fundada na justiça e dignidade dos
povos.
O respeito por esta dignidade começa pelo
reconhecimento e pela tutela do estatuto ontológico-jurídico do povo de
Cabinda, do seu direito a viver como povo e de fazer escolhas sobre o futuro
dos seus filhos. Pelo que não se pode continuar reprimir o testemunho da
própria consciência moral, renegando a Liberdade e a Dignidade de todo um povo.
Disto segue-se, finalmente, que não se pode
continuar a fazer guerra em Cabinda para ficar com o petróleo, afogando os
legítimos desejos das populações deste território. O povo de Cabinda deve ser
privilegiado para viver normalmente como povo.
O problema actual consiste em encontrar princípios
sólidos conformes com a verdade sobre Cabinda, sobre o sentido da vida e do
destino das suas populações, e adoptar consensos a partir dos quais se acabará
com o conflito armado e se fará justiça ao povo de Cabinda. Daqui a necessidade
para Angola de ter uma atitude de contrição perante "fraude" contida
nos Acordos de Alvor que estipulou a apropriação do enclave de Cabinda e a sua
integração no "espaço-território" de Angola ao arrepio da
Constituição portuguesa de 1933.
Finalmente, a paz em Cabinda precisa de um
fundamento estável, não relativo, não aviltado. E a única solução sensata para
construir a paz autêntica para Cabinda é um diálogo franco e aberto, esse
diálogo que, partindo do real subjacente à "questão de Cabinda" vai
ao encontro de reconciliação, de fraternidade e de justiça, de dignidade para
as populações de Cabinda.
Conclusão e Recomendações:
E, para terminar, devo dizer que a questão de
Cabinda é inevitável e irreprimível; envolve cada homem em particular que não
renuncie a pensar. E se é que este problema reaparece neste debate, é por que
existe. «Não é por pouco se falar dele que ele deixa de existir», dizia Orlando
Castro.
Enquanto não houver política que instaure uma
verdadeira justiça para Cabinda, não se pode pôr fim ao conflito ainda
reinante, pois a actual gestão da especificidade de Cabinda terá sempre o mesmo
valor semântico que «alienação», «colonização». Neste contexto, Cabinda
será sempre um verdadeiro barril de pólvora: o número daqueles que no
nosso meio se chamam FLECs vai aumentar.
Diante desta situação, recomendo:
1) A auscultação das Populações de Cabinda e
promover um debate franco e aberto em torno da sua causa, constituindo para o
efeito, uma comissão independente integrando elementos das Nações Unidas e da
União Africana para conduzir o processo de auscultação;
2) O envolvimento da ONU e da União Africana na
resolução da questão de Cabinda. É necessário que a Comunidade internacional
assuma as suas responsabilidades nesta questão;
3) A elaboração de uma Agenda de Paz para
Cabinda, relatório produzido por uma Comissão Independente de Auscultação das
Populações de Cabinda e que descreve a situação actual em Cabinda, os contornos
da questão de Cabinda, a evolução das perspectivas de solução do conflito e
definir procedimentos susceptíveis de estabelecer uma paz duradoira para
Cabinda.
4) A instauração de um clima susceptível de
pacificar as consciências, através do respeito pelos direitos humanos e das
liberdades fundamentais, da justa partilha da produção e da riqueza acumulada
da comunidade e da permanente busca de consensos sobre a questão de Cabinda.
Este clima permitiria a reaproximação dos beligerantes, o que por si só
constituiria um sucesso de realce;
5) A organização de negociações construtivas e
inclusivas sobre o futuro estatuto político e Jurídico de Cabinda.
Muito obrigado!
Windhoek, 14 de Janeiro de 2013.
José Marcos Mavungo
Activista dos Direitos Humanos
Activista dos Direitos Humanos
Orlando Castro
Jornalista (CP 925)
A força da razão acima da razão da força
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Jornalista (CP 925)
A força da razão acima da razão da força
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