quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Era um reino muito engraçado. Um conto de natal


A Patrícia Martinelli
Era um reino muito engraçado, tinha muito petróleo mas não tinha nada. Era um reino muito engraçado, tinha muitos diamantes mas não tinha nada. Era um reino muito engraçado, tinha uma barragem gigantesca mas não tinha luz. Era um reino muito engraçado, tinha muitos rios mas não tinha água. Então o que é que esse reino tinha?! Era um reino muito desgraçado, tinha muitos idiotas no poder.

A governança afadigava-se atípica e escusava-se, especialmente o Ministério da Energia Jingola que garantia sempre a mesma coisa, sempre o mesmo estado de sítio: «Que a iluminação pública melhorou. Novas centrais na capital geram energia sem cortes. E que estão a ser criadas condições para melhorar o fornecimento de energia à capital de Jingola. E mais, que o fornecimento de energia na quadra festiva está garantido. E lembram que na época da quadra festiva, o Ministério cria, todos os anos, um programa especial de acompanhamento e prevenção na área da distribuição de energia para se evitarem cortes e outras anomalias que perturbem o normal funcionamento de energia.»

Alheias a estes sortilégios, a tia Lwena, a tia Marta e a tia Emília denunciam à vez o seu jornal pessoal de notícias. Estão na entrada do seu prédio sentadas. A tia Emília está com a sua caixa térmica na venda de gasosa. Ela e a Marta trocam dólares e vendem cartões de recarga de telemóveis. A Lwena assiste-lhes nas conversas. São muito religiosas, muito supersticiosas, muito fanáticas. Estão como num templo de Cristo destoado no tempo. A tia Lwena inicia as últimas do seu jornal:

- Os sul-africanos estavam lá na empresa, estava tudo bem. De repente apareceram os portugueses, eles parece que são como os fantasmas, aparecem assim como do nada. Ludibriaram o meu filho com as prendas do Natal. Só lhes deixaram uísques, essas bebidas que ardem, tá a ver mana, não é?!
A Emília anui contristada. Ela tem estudos, até já trabalhou muitos anos numa farmácia. Também costuma dar dicas sobre medicamentos. Cansou-se porque o salário que usufruía não dava para o gás da cozinha. Insurge-se em defesa da sua companheira de infortúnio:

- É o elementar saudosismo colonialista, revanchista do povo que infelizmente se tornou no mais desgraçado da Europa. Esses portugueses também mana… está tudo bom, onde eles chegam fica tudo bem podre, estragam tudo.
A Marta não é muito condescendente, na verdade é agressiva. Cara de santinha mas quando se enerva gosta de exibição. E reforça as suas manas:

- É mesmo verdade manas, e então onde há vinho fazem muita confusão. São muito atrasados. Involuiram muito. Quando me chatearem vou-lhes atirar montes de pedras nos focinhos deles. Chegará o momento em que esses que nos governam e mais esses estrangeiros nos pagarão por todos os males que nos fazem. Isto é o sinal do fim dos tempos. Manas, se olharem bem para o céu já se notam alguns sinais da vinda do Senhor. Eles que se cuidem, mas não adianta porque não se salvarão, já é tarde demais. Hum! Manas, sabem que mais? A melhor?

- Não mana, conta lá, é o quê? - Agitaram-se as duas.
- Então este nosso reino também… só nos garante água, luz e protecção policial uma vez por ano. Mas que porra de reino é este?! Deve ser um daqueles universos paralelos que o meu filho me disse que viu do filme da BBC. Então só existimos uma vez por ano? Só na quadra festiva e nos outros dias… nada. É mesmo puro africanismo. Se a luz faltar é bem feito. Também tão fraca como está. Isto de sermos africanas á toa acaba quando?! Cada vez piores!
- Mana, não rogue pragas, senão vai estragar a nossa quadra festiva. Não dá fazer blasfémias porque o demónio agora anda muito… está sempre atento. Ai meu Deus, sinto que vamos ficar sem luz e sem água! Deus devia era arrasar esta merda toda. Mas não vai demorar, depressa esta merda vai acabar. – Confessou com convicção a tia Lwena.

A Emília ajunta sobre a costumeira escuridão que invade de prontidão a capital do reino Jingola.
Manas, aí numas ruas estão há quatro dias sem luz. Já se cansaram de escavar nos passeios, nas ruas… está tudo estoirado como no Iraque. Continuam nas buscas da avaria, onde o cabo está estragado. Dizem que pode demorar horas, dias, semanas, até resolverem esse mistério do cabo eléctrico.
Como é dia 24, véspera do Natal, as tias arrumam as suas tralhas e rumam para as suas casas, desejando como é obvio as recíprocas boas-festas. E o lamento habitual de todo o Jingola: «Lutámos para quê! Jingola está outra vez na mãos dos estrangeiros!

Dia 25, Natal. Está tudo numa boa. Nalguns lares jorra a ostentação da espoliação petrolífera e demais riquezas Jingolas. Nestes nunca há problemas… por enquanto. Na quase totalidade os pobres lares Jingolas jorram da atribulada miséria. Estes não têm direitos. Os senhores Jingolas aldrabaram-nos com a liberdade e forçam-nos a uma escravidão indescritível perante o escárnio das matilhas estrangeiras.

Então aconteceu: mesmo naquele momento em que todos estão de plantão para atacar os comes e bebes que invadem mesas e copos. Tumbas, a luz foi-se e em seguida a água. Então as crentes tias reúnem-se como um desses comités de especialidade, de emergência para analisarem a situação. A tia Lwena, fervorosa crente é a primeira na manifestação:
- Aiuééééé!!! Manas, manas, manas! É o sinal… ele chegou!
- Ele quem?! - Atrapalha-se a Marta.
- O Senhor, pois quem mais havia de ser?!
A Emília corrobora-as e atira-lhes a santa bênção da finalmente chegada do Senhor à Terra para redimir os vivos e julgar os mortos.
- Manas, já sabem como é!
- Sabemos mais o quê?! – Juntaram-se em coro a Marta e a Lwena.
- Atirar tudo fora, incluindo o nosso dinheiro, porque este é o derradeiro sinal da vinda de Deus. Salvemo-nos manas… e assim seja.
- Ámen! - Sentenciaram-se.

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