sábado, 5 de dezembro de 2009

A revolta dos escravos. O maior líder da revolta foi traído por sua própria confiança na liberdade.



Por Aloisio Milani

PAZ INATINGÍVEL Os brancos se negavam a aceitar uma rendição ou um acordo de paz. Três comissários franceses com 6 mil soldados chegaram a São Domingos para tentar acabar com as disputas políticas e as rebeliões dos escravos. Logo depois a monarquia caiu na França e a República foi proclamada. Em meio às negociações dos comissários, os franceses declararam guerra contra a Inglaterra e os rebeldes também se mobilizavam na medida da evolução política do Velho Continente. Os exércitos dos ex-escravos se movimentaram entre apoios à Espanha, Inglaterra e França durante os anos seguintes. Em 1794, a França aboliu a escravidão de todos os seus territórios. Toussaint, lutando pelos franceses, conseguiu expulsar britânicos e espanhóis da colônia. Foi nomeado pela metrópole chefe do exército. Chegava ao auge de seu poder. Quando Napoleão Bonaparte foi eleito primeiro-cônsul, São Domingos proclamou uma Constituição, tornando-se província autônoma. Contudo, em 1802, Napoleão se tornou cônsul vitalício e começou a reação. Já com o domínio da Louisiana, ao sul dos Estados Unidos, enxergou São Domingos como um ponto-chave para a expansão do império francês no Novo Mundo. Enviou uma armada para a ilha:47 mil homens sob o comando do general LeClerc.

Toussaint não acreditava que Napoleão quisesse restabelecer o domínio e a escravidão, mas virou-se contra o governante. Após fracassos de seu exército, rearticulou as forças sob seu comando e imprimiu sobre as tropas francesas derrotas memoráveis. Ainda bem-intencionado com os colonizadores, o líder negro fez um acordo de paz e se deixou levar, preso, até a França, na tentativa de negociar. Acabou morto numa prisão em Forte Joux, nos Alpes. O maior líder da revolta foi traído por sua própria confiança na liberdade.

O movimento independentista não parou. Nova rebelião, desta vez liderada por Dessalines, derrotou as tropas de LeClerc e proclama a independência da ilha em 1804 sob o nome de Haiti. O ciclo da revolução negra se fechava depois de mais de uma década de conflitos com um saldo de pelo menos 200 mil mortes entre os rebeldes.

“A revolta iniciada por Toussaint L’Ouverture visava assegurar aos habitantes da colônia os mesmos direitos que os da metrópole. Era uma luta pela igualdade, e essa luta sempre foi um equívoco dos movimentos negros. Jacques Dessalines, aliado de Toussaint, não pensava em igualdade. Sabia que a liberdade de sua gente só estaria assegurada se lutasse pelo poder”, explica Afonso Teixeira Filho, tradutor para o português da obra Os jacobinos negros.

A repercussão da revolução de São Domingos foi gigantesca para a luta contra a escravidão. Ainda maior era o temor dos escravocratas de que a revolta influenciasse todas as Américas. O historiador John Hope Franklin escreveu, em Da escravidão à liberdade, que os americanos ficaram horrorizados diante das notícias do que acontecia no Haiti. A partir de 1791, “muitos preocuparam-se mais com os acontecimentos no Haiti do que com a luta de vida ou morte que se desenvolvia entre França e Inglaterra”. No Brasil, muitos comentaristas nativos e estrangeiros escreveram sobre os perigos da revolta em terras tupiniquins, embora a influência tenha sido limitada. Alguns milicianos mulatos no Rio de Janeiro usavam retratos de Dessalines.

EXEMPLO PARA O MUNDO “No período da Regência (1831-40), o termo ‘haitianismo’ foi usado como um epíteto contra jornais que supostamente representavam os interesses da população de cor livre e abordavam persistentemente a questão racial”, diz Stuart Schwartz, em Segredos internos – Engenhos e escravos na sociedade colonial. Nenhum dos inquéritos judiciais contra as rebeliões escravas na Bahia apontava a inspiração haitiana, mas não há dúvidas sobre sua importância na luta contra a escravidão colonial.

A revolução de São Domingos tocou no cerne dos interesses da época. Naquela geopolítica, a derrota das tropas francesas fez com que Napoleão vendesse a Louisiana a preços baixos e evitou uma possível expansão nas Américas. Gerou, claro, grande impacto no mercado do tráfico de escravos e no preço do açúcar. Quando o parlamentar francês Jean Jaurès, autor de História socialista da Revolução Francesa, classifica a Revolução Francesa de “triste ironia da história humana”, uma análise pode ser estendida ao Haiti. Isso porque a própria riqueza do comércio de escravos deu orgulho suficiente para a burguesia francesa lutar pela Revolução Francesa – liberdade e igualdade de direitos dos seres humanos. Ou seja, a desumanidade da escravidão gerou a revolução da emancipação humana. E a principal fonte de recursos dessa burguesia, a venda de escravos a São Domingos, se esvaiu depois que a liberdade impregnou as mentes dos habitantes do Haiti. Causou outra ruptura. Ironia de um realismo fantástico.

© AKG IMAGES/LATINSTOCK

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