A tragédia ocorrida na noite da passagem de
ano no estádio da Cidadela, que resultou em 13 vítimas mortais e 120 feridos,
ofereceu às autoridades todas as condições morais e jurídicas para pôr cobro ao
charlatanismo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).
Essa mesma tragédia poderia ser o ponto de
viragem para o Estado libertar centenas de milhar de angolanos das tenebrosas
teias desta organização pseudo-religiosa.
Mas, lamentavelmente, tudo se encaminha para
que a seita fundada pelo brasileiro Edir Macedo saia mais fortalecida do
sangrento episódio por si promovida.
A criação da Comissão de Inquérito pelo
Presidente da República é um claro indício de que as autoridades angolanas não
têm o menor interesse em indispor a IURD.
Hipoteticamente, quer pela sua representação
em termos eleitorais quer pelo seu poderio económico-financeiro, as autoridades
angolanas acabam demonstrar publicamente o seu temor e reverência face à seita
brasileira.
No pior dos cenários, a IURD e os seus
líderes serão confrontados com uma simbólica reprimenda no sentido de
“reforçarem as medidas de segurança” e de “criarem condições para que tão
dramáticos e dolorosos acontecimentos nunca mais voltem a repetir-se”, como se
lê na nota de condolências da Presidência da República.
A Comissão de Inquérito criada pelo Presidente
da República é um artifício que persegue dois objetivos simultâneos. Por um
lado, dar algum “conforto” às vitimas da tragédia e aplacar a ira e a
indignação da sociedade. Por outro, procura ganhar tempo para, depois,
assegurar à IURD que não irá sofrer nenhumas consequências pela tragédia por
esta provocada.
Nos termos do despacho presidencial, a
Comissão de Inquérito deverá apresentar a José Eduardo dos Santos, no prazo de
15 dias, um relatório dos seus trabalhos. Além do ministro do Interior, que a
coordena, e da ministra da Cultura, vice-coordenadora, a comissão integra ainda
os ministros da Administração do Território, da Justiça, Saúde e da Juventude e
Desportos.
Ao total de seis ministros, junta-se ainda o
governador de Luanda. Esses dignitários deverão apoiar-se num grupo técnico,
que além do secretário de Estado que o coordena, ainda tem de escolher os
restantes integrantes.
Quando, finalmente, os seis ministros
conseguirem compatibilizar as respectivas agendas com a do governador de Luanda
para a primeira das muitas reuniões da Comissão de Inquérito, provavelmente já
terá sido consumida mais de metade do prazo dado pelo PR. E quando todos os
integrantes da comissão estiverem juntos para a reunião com os membros do grupo
técnico, é quase seguro que isso acontecerá já depois de expirado o prazo
presidencial. E nessa altura já estará a desaparecer a onda de indignação face
à tragédia ocorrida no estádio da Cidadela.
José Eduardo dos Santos criou uma estrutura
para, em 15 dias, conseguir aquilo que Polícia Nacional levou menos de 24 horas
a fazer para apurar as causas da tragédia.
Em comunicado, a Polícia Nacional incluí
entre as razões do desastre, a distribuição, pela IURD, de material
propagandístico com promessas de cura e resolução de males como inveja,
feitiçaria, dívidas e miséria. Atraídos pela enganosa publicidade, milhares de
angolanos, provenientes de várias províncias do país, acorreram à Cidadela
Desportiva, o que “causou excessiva lotação na parte interior” do estádio.
O Ministério do Interior revela também que a
IURD dispensou os “planos operacionais” que a Polícia e o Serviço Nacional de
Protecção Civil e Bombeiros conceberam para o que se supunha ser uma cerimónia
religiosa.
No mesmo comunicado, o Ministério do Interior
anunciou ter ordenado à Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC) a
abertura de um inquérito para apurar as responsabilidades pelo ocorrido. Os
resultados desse inquérito seriam submetidos ao Ministério Público.
Em suma, o Ministério do Interior sintetizou
o que a todos parece óbvio – a responsabilidade da IURD. E era no sentido da
responsabilização incondicional da IURD que se encaminhavam as expectativas da
sociedade.
A criação de uma Comissão de Inquérito veio,
porém, mostrar que o Presidente da República tem outros planos.
Ninguém duvide. José Eduardo dos Santos dará
ao relatório exigido à nova Comissão de Inquérito o mesmo destino dos
relatórios das centenas de comissões de inquérito que vem criando ao longo dos
seus 33 anos de poder: a gaveta da sua secretária ou o balde de lixo.
No fundo das gavetas ou nos trituradores de
papel jazem os relatórios e restos dos inquéritos mandados instaurar pelo PR,
na sequência de desastres aéreos e outros episódios que enlutaram o país.
Em situações embaraçosas, o modus operandi de
José Eduardo dos Santos tem sido invariável.
A inclusão do governador de Luanda na actual
Comissão de Inquérito é uma prova adicional de que José Eduardo dos Santos não
está interessado em apurar responsabilidades e confrontar a IURD.
A seita de Edir Macedo tem andado de mãos
dadas com o Comité Provincial do MPLA de Luanda, dirigido pelo mesmo Bento
Bento. A IURD e o CPL do MPLA gabam-se publicamente da parceria que os une.
Bento Bento é um dos fiéis mais influentes da referida seita.
Não há muitas voltas a dar. Se estivesse
interessado no completo apuramento dos factos e na posterior responsabilização
criminal dos promotores da tragédia, o Presidente da República só teria de
fazer o óbvio. Teria encorajado o Ministério do Interior, através dos seus
órgãos especializados, a prosseguir com o seu trabalho. Competiria, depois, ao
Ministério Público o passo seguinte, ou seja, determinar se haveria ou não
lugar a responsabilização criminal da IURD.
Lamentavelmente, parece não ser esse o
caminho escolhido por José Eduardo dos Santos. Tudo indica que as vítimas e
seus familiares poderão nunca ver atribuídas responsabilidades pela tragédia do
fim de ano, por iniciativa política do Presidente da República.
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