Em
1983, bem antes do fim da ditadura, denunciei três grandes
escândalos financeiros urdidos nos bastidores do sistema autoritário, os quais
ficaram conhecidos como o caso Delfin-BNH, o caso Coroa-Brastel e o caso
Capemi. Foi a inauguração do jornalismo investigativo na área econômica no
Brasil, contribuindo fortemente para a desmoralização do regime. Era
investigação jornalística crua: sem Polícia Federal, que só pensava em prender
opositores políticos; sem Ministério Público, sem CPI, sem quebra de sigilos,
sem escuta telefônica.
Por J.
Carlos de Assis - de João Pessoa. correiodobrasil.com.br
Trabalhei
exclusivamente a partir de documentos vazados por empregados e funcionários
públicos insatisfeitos com a corrupção em suas empresas ou instituições, e com
depoimentos verbais rigorosamente conferidos por no mínimo três testemunhas.
Nunca fui processado por civis que eventualmente questionassem minhas
afirmações. Fui processado, sim, por dois ministros de Estado com base na
antiga Lei de Segurança Nacional, aquela que criminalizava a intenção
subjetiva, e não só os atos supostamente contra o regime.
Escapei
de condenação porque o juiz militar de primeira instância entendeu que, ao
contrário do que a LSN não previa, me devia ser dado fazer a prova da verdade.
Não precisei fazer. Na verdade, já estava feita nas reportagens. Com isso os
ministros, um deles chefe do SNI, o outro da Agricultura, desistiram da ação.
Comparo isso, em pleno regime militar, com o jornalismo dito investigativo que
tem sido feito no Brasil em pleno regime democrático. É o jornalismo da
espionagem, da invasão da privacidade, da exposição pública de suspeitos, do
achincalhe de inocentes, da opinião prevalecendo sobre a informação.
Na verdade, não existe hoje no Brasil (e no
mundo) algo que mereça mais uma investigação jornalística séria do que o
próprio jornalismo. Luís Nassif e Paulo Henrique Amorim vêm fazendo esse papel.
Eu costumo rejeitar teorias conspiratórias, mas neste caso as evidências são
óbvias. Uma delas vem de fora, o caso Murdoch, da Fox . Na Inglaterra, ele
montou um sistema de espionagem de centenas de personalidades para alimentar um
jornalismo de chantagem do sistema político. Nos EUA, ele tentou inventar um
candidato a presidente da República que seria apoiado por seu império de
comunicação.
Qual é o pano de fundo dessas atividades
jornalísticas criminosas, que põem em risco até as maiores e mais antigas
democracias do mundo? A pista é o próprio Murdoch, o bilionário das
comunicações. A articulação da grande mídia com as grandes corporações
mundiais, notadamente os bancos, constitui uma base de poder incomparável nas
democracias. Os bancos financiam a mídia para que a mídia faça a lavagem
cerebral nos eleitores em defesa de seus interesses. A isso se deveu o sucesso
ideológico espetacular do neoliberalismo nas últimas décadas. (Vejam aqui as
críticas da mídia à queda dos juros!)
O processo foi facilitado pela
desestruturação da União Soviética. Durante o governo Yeltsin, a imensa máquina
de espionagem russa ficou completamente desamparada e sem objeto, até que foi
em parte recuperada por Putin. No intervalo, porém, muitos espiões ficaram
virtualmente sem emprego na Rússia e no mundo. A meu ver, boa parte deles foi
recrutada por corporações jornalísticas inescrupulosas como jornalistas ou
simples informantes remunerados por “trabalho”, e colocada a serviço dos
sistemas financeiros.
E no Brasil, o que está acontecendo?
Primeiro, há um problema estrutural no mercado jornalístico. Sob pressão da
Internet, que comanda o processo de produção de notícias, o espaço dos jornais
se estreitou. Para sobreviver lhes resta o campo da análise, da crítica, do
lazer etc. Mas e as revistas? Bem, as revistas ficaram com um espaço ainda
menor. Sua circulação está caindo, com ela a publicidade. Para reagirem, só têm
o espaço do escândalo. E para publicar escândalos contratam espiões, dos quais
os jornalistas são meros redatores.
Não é possível com os meios de que disponho
fazer prova direta disso, mas é só prestar atenção nas indiretas. Quem publica
escândalo semana sim, semana não? Quem contrata espiões como informantes, tal
como ficou comprovado na CPI do Cachoeira, infelizmente abortada? Quem obtém
(ou compra) da Polícia Federal fitas com degravações de escutas telefônicas
sigilosas? Quem tem acesso a processos do Ministério Público ainda protegidos
por sigilo? Quem manipula parlamentares com chantagens?
Pessoas de boa fé acreditam que essa é a
única forma de identificar corruptos. Minha experiência, como indicada acima,
diz que não é. Além disso, a maioria dos corruptos se protege, nada de ilegal
tratando por telefone. Mas o que acontece quando há um corrupto na linha
grampeada por ordem judicial falando com Deus e o mundo? Podem ser centenas, e
grande parte inocente. Mas sua privacidade é invadida e colocada à mão de
policiais que, se forem corruptos, têm ali farto material de chantagem. Por acaso
alguém controla isso, já que tudo pode vazar impunemente?
É claro que toda essa situação coloca um
desafio e um risco imenso para a democracia no Brasil. A ameaça maior é que a
violação de direitos recorrentemente praticada pela mídia está sob a bandeira de
um bem público maior, a liberdade de imprensa. Não é conveniente jogar fora o
bebê com a água da bacia. Contudo, é preciso aproveitar algum fato concreto
para se criar uma CPI. Além disso, o Executivo deveria reorganizar seu sistema
de informações, talvez criando uma Agência Nacional de Segurança como os EUA,
integrando numa só estrutura órgãos que hoje se encontram sem qualquer
supervisão e controle.
J. Carlos de Assis é economista e professor de Economia
Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de A Razão de Deus,
editado pela Civilização Brasileira.
Imagem: A ditadura
guarda seus escândalos
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