quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Um peso e duas medidas que nos afundam


A renovada hipocrisia sustenta as milenares relações entre as nações poderosas e os humilhados que ao longo da História lutam para se libertarem da escravidão imposta como lei. Finalmente pouca resta para esmagarem as grilhetas dos últimos ditadores que descendentes de Deus, ainda impõem a espada do poder de vida e de morte sobre os seus condenados povos.

«Um peso e duas medidas perante crimes contra a humanidade
Canal de Opinião por Adelino Timóteo

Beira (Canalmoz) - Quando o Conselho de Segurança da ONU decidiu adoptar a Resolução 1970 na perspectiva de proteger o povo Líbio do excesso de legítima defesa invocado pelo regime de Muammar Kadhafi, foi como uma lufada de ar fresco em meus pulmões. O jornal “El País” me informava então – era Março deste ano – que Kadhafi estava lançando artilharia pesada contra o seu próprio povo que lhe pedia que “marchasse” para o exílio, abrindo a possibilidade a que os outros líbios se livrassem de 42 anos de ditadura.

A Resolução 1970 tendia a criar uma zona de exclusão aérea por forma a que se limitasse os bombardeamentos conduzidos pelas Forças Armadas da Líbia (FAL) às cidades amotinadas. Foi uma resolução acertada, ainda que tardia, pois a situação dos civis tendia a deteriorar-se, com mortes a acumularem-se. Esta Resolução reiterava a responsabilidade das autoridades líbias em proteger a população da Líbia, reafirmando que as partes em conflito armado têm como primeira responsabilidade tomar todas as medidas possíveis para garantir a protecção dos civis.

No jornal “El País”, através de imagens do filósofo francês Bernard-Henri Levy, despachadas a partir de Bengasi, e não só, e pelas imagens que se descarregavam no “twitter” se assomavam os testemunhos de que as tropas sob o comando de Kadhafi estavam bombardeando os civis, o que configurava crime contra a humanidade. E mais do que um inferno, em Março deste ano o ‘sátrapa’ havia tornado a Líbia um país isolado do mundo, uma vez que vedara aos medias internacionais a entrada naquele país do norte de África, para fins de cobertura noticiosa. Os primeiros difusores da chacina protagonizada pelo derrubado Governo líbio foi pessoal estrangeiro que trabalhava em firmas e Líbios integrantes do movimento dos “indignados”. Os primeiros jornalistas a chegarem à Líbia viram-se restringidos de realizarem a cobertura da revolta que estava em curso, no quadro da designada “primavera árabe”.

O regime Líbio mantinha-se irredutível perante a solidariedade internacional com relação ao movimento dos “indignados”. A opinião mais saudável foi a do referido filósofo francês que propunha a criação rapidamente de uma zona de exclusão aérea, para deter a mobilidade da aviação das FAL. Até aqui tudo bonito!

Estava eu também preocupado com a sorte dos meus compatriotas que estavam então na Líbia, os quais depois seriam repatriados após semanas de tensão e incerteza. Foi um alívio, mas o que estava acontecendo é que entre os “indignados” juntavam-se desertores do exército líbio que propugnavam por mudanças. O direito internacional público estava sendo violado na Líbia, pela amálgama das detenções arbitrárias, desaparecimentos, torturas e execuções sumárias, sobre as quais já se contavam como vítimas profissionais da imprensa e pessoal associado.

A Resolução 1970 foi um instrumento de justiça humanitária de que me orgulhara então como cidadão do mundo. Em bom rigor, no seu parágrafo 26 a ONU manifestou a sua disponibilidade em considerar tomar medidas adicionais, caso necessário, para facilitar e apoiar o regresso da ajuda humanitária e disponibilizar ajuda humanitária aos Líbios vítimas das atrocidades do ‘sátrapa’ Kadhafi. O âmbito deste instrumento pretendia estabelecer um sentido amplo de ajuda, de determinação em assegurar a protecção dos civis e a rápida passagem sem entraves da ajuda humanitária com segurança.

Foi tão lindo ver o povo Líbio abraçado pelo mundo, pelas nações modernas que pactuaram no sentido de tornarem os problemas dos líbios seus, como se aquilo os afectasse directamente na carne e osso. Foi particularmente emocionante testemunhar o renascimento da solidariedade no mundo, sonhar que doravante nenhum ditador ficaria impune na eventualidade de exterminar o seu povo, na eventualidade de praticar genocídio contra os seus opositores, pois o Estado de Direito na Líbia residia na mão de ferro de Kadhafi e numa dúzia de seus acólitos, entre os quais os filhos e familiares mais chegados, que se pretendiam perdurar para todo o sempre, à custa do erário público líbio.

Kadhafi, que os cidadãos comuns empobrecidos dos subúrbios e cidade de Maputo conheceram ‘in loco’ em 2003 pelo seu feitio de “caga-milhões de dólares”, estava cometendo mais esses excessos que facilmente levaram o mundo a esquecer os atributos que o davam como um ser aparentemente generoso que salvara algumas economias decadentes, caso da Itália, na Europa, e Zimbabwe, na África, entre muitos outros feitos, que por certo constarão do seu testamento. Em pouco tempo ele, que chegara a passar por “rei dos reis de África” e nessa qualidade convidara líderes tribais de África à Sala de Conferência Ougadogou, de Sirte, viu-se repentinamente isolado até dos seus pares ditadores de África e Ásia. Refiro-me aos clubes de ditadores em que ele militava: Liga dos Países Árabes, União AFRICANA . Não seja por isso que, num exercício de denegar que era o “le infant terrible”, após a deliberação da Resolução 1970 ele reduziu os seus excessos e convidou todo mundo a testemunhar a situação no terreno, de modo que jornalistas e repórteres fotográficos de guerra, de quase todos os cantos do mundo, receberam credenciais para acompanhar a situação no terreno, sarcasticamente a partir de um dos hotéis de Tripoli, onde os acantonaram.

A Resolução 1970 da ONU, portanto, foi o que levou Kadhafi a ceder, declarando cessar-fogo que nunca cumpriu, e prometendo reformas democráticas na Líbia, o que, mais que determinado, não colheu a confiança de ninguém pois no terreno a guerra prosseguia e os rebeldes “indignados” perdiam terreno em cidades que tinham conquistado. Só depois da implementação deste dispositivo que tendia a limitar a aviação das Forças Armadas da Líbia é que vimos todos a beligerância de Kadhafi a reduzir. A OTAN tomou o controlo do espaço aéreo Líbio, e foi reduzido a potencialidade anti-aérea do regime.

Quando as forças de Kadhafi perderam a capacidade de resposta e supremacia aérea assistiu-se a um relativo equilíbrio de forças entre os beligerantes. O que foi justo! Foi justa também a decretação de embargo de armas à Líbia e congelamento de bens do Estado líbio no exterior, por forma que esses beneficiem ao próprio povo.

Todavia, para aquilatar o déficit de organização e incapacidade de afrontamento dos rebeldes aos leais a Kadhafi a OTAN decidiu prosseguir a campanha de bombardeamentos. Só que neste momento está bombardeando um misto de alvos militares e civis. As imagens que chegam de Sirte e Bani Walid o espelham. A máquina de propaganda ocidental domina completamente a comunicação no terreno, mas eximindo fazê-lo com isenção e imparcialidade. Pode-se ver através de vários vídeos que são filtrados na internet a barbárie que a OTAN está cometendo contra vidas indefesas, ante o olhar indiferente e complacente de profissionais da comunicação social dos mais reputados do mundo. Infelizmente muitos dos abnegados e firmes jornalistas que trouxeram ao de cima os testemunhos das atrocidades de Kadhafi ausentaram-se da sua missão de mensageiros e se apaixonaram pela nova “revolução líbia” e pelos danos que a OTAN está cometendo contra a população civil e indefesa.

Na Líbia já morreram mais de 25 mil civis e outras 1.700 pessoas são mutilados de guerra. A OTAN mantém a determinação de bombardear, num acesso de corrida contra o tempo, na perspectiva de acabar com as forças residuais de Kadhafi e a sua capacidade combativa, mas enquanto se precipita no que é meta – declarar Líbia livre e culminar com a formação do novo Governo na Líbia – muita mais gente civil continuará a morrer, sinal de que à OTAN lhe cabe também a acusação de cometer crimes “lesa humanidade”, debaixo do mandado da ONU que advoga estar a cumprir, e de facto, lhe outorgaram.

A pergunta que me apetece fazer é: os arautos da democracia e da humanidade do Conselho de Segurança da ONU e da OTAN serão notificados pelo Tribunal Penal Internacional para responder no contexto de crimes contra a humanidade? Ou essa qualificação de crimes visa apenas determinadas pessoas?

David Cameron, primeiro-ministro da Inglaterra, e Nikolas Sarkozi, presidente francês, visitaram a Líbia na qualidade de cérebros da operação de protecção das vidas civis. Perante os excessos que os seus homens estão cometendo serão alguma vez arrolados ou chamados a justificar essa tamanha barbárie?

O silêncio do mundo, hoje, é algo que muito me assusta. Flagela muito mais do que esta hedionda e macabra matança. Os dirigentes terceiro-mundistas andam todos apossados pelo medo, pânico. Falta-lhes algum impulso para dizer basta, que isso é injusto! Ou será que ao permitir essa saga e carnificina estão na expectativa de se beneficiarem dos petrodólares?

Na Líbia há neste momento mais de um milhão de pessoas com armas na mão. É assustador, para um país que tem uma população de seis milhões de habitantes. Não deixa de ser uma satisfação ver-se o derrube de Kadhafi. A União Africana estenderá alguma indignação perante a saga de que poderá resultar em genocídio e uma guerra de guerrilha entre irmãos líbios?

Não há quem possa me desmentir: Estamos perante um peso, duas medidas, nisto em que ambas partes cometem crimes contra a humanidade! Pois a OTAN não é uma organização supra-universal que possa ser inocentada, isentada dos excessos que pratica em terra, onde vivem os seus membros e mandatários, sob o risco de esvaziarem o âmbito de igualdade entre os homens, pugnada pela Carta das Nações Unidas, resultando assim uns mais iguais entre si, outros diferentes e por tal iguais entre si.

A 66ª sessão da ONU decorreu perante ovações e festas emocionantes e ruidosas sobre a vitória do Conselho Nacional de Transição Líbio ao regime Kadhafi. Tirando um ou dois presidentes, a maioria não meteu a mão na consciência, para dizer basta de sangue na Líbia. Do que a Líbia precisa não é a extensão por mais três meses dos bombardeamentos da OTAN, mas de mandatários da ONU que tratem de promover a resolução pacífica de conflitos, para que o conflito interno ora internacionalizado não perdure por mais tempo.

Que a ONU substitua o diálogo da força das armas e bombardeamentos por uma missão de Paz que envolva gente humanamente séria, não alienada por este espectáculo que mata, semeia mortes, luto e ódio susceptível de passar de geração a geração! De contrário, à vaga de bombardeamentos poderá seguir-se a ‘somalização’ do conflito, alastrando-o pelo tempo e manchando o carácter desta revolução de que se orgulha o Povo Líbio e os amantes da liberdade no mundo inteiro. »(Adelino Timóteo)

Sem comentários: