segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A propósito das actuais manifestações e prisões - Marcolino Moco


Luanda - Ontem foi dia de Neto, numa altura que um slogan seu (“nós somos milhões e contra milhões ninguém combate”) é abusivamente, e mais uma vez, utilizado, fora do contexto e ao serviço da eternização do maniqueísmo político em Angola. É isso que me leva a fazer, hoje, esta reflexão: o que diria Neto hoje, se fosse vivo, naquela sua fantástica capacidade de criar slogans adequados a cada momento de suas batalhas pela libertação dos povos de Angola e de África?

Fonte: marcolinomoco.com
1-Agostinho Neto, como homem do seu tempo viveu e morreu antes do fim da Guerra-Fria. Nesse tempo em que não havia alternativas entre posicionar-se de um ou outro lado das barricadas mundiais, especialmente na condição de liderança de uma luta de libertação numa colónia que tinha sido eleita como a jóia da coroa de um império colonial retardatário, comandado por um autoritarismo intolerante como foi o de Salazar e Caetano, mal consigo ver um Neto diferente a conseguir o que hoje é reconhecido por todos como o seu maior legado: a proclamação de uma Angola independente.

Vou revelar-vos − e tenho testemunhos vivos − que nas minhas conversas com Joaquim Pinto de Andrade, no início dos anos 90 do século passado, este outro intrépido libertador nacional mas acérrimo contestatário do “presidencialismo” netista da época, reconheceu este condicionamento de Neto à sua época, à sua ideologia e à situação concreta do colonialismo português que ambos combatiam.

2-Mas, Neto nos seus discursos tão ricos de conteúdo e nos seus actos subsequentes, deu mostras de sobra sobre como (ele) seria diferente se vivesse em épocas de descompressão como estas, que nós vivemos, depois do fim da Guerra-Fria e do fim dos blocos mundiais que se seguiram à queda do Muro de Berlim.

Alguns ditos e factos:
a)Em 1974, havia uma tendência de se desestimular a ambição política de integrar os movimentos de libertação por parte de quem não tivesse participado antes, nos combates contra o colonialismo, a partir do exterior ou na clandestinidade. Por esta ou aquela razão sentenciavam-nos: “ Cala a boca, você apareceu depois do 25 de Abril”. Neto impressionou-me ao acabar com este complexo, dizendo mas ou menos isso: “Camaradas, nem todos nós nascemos no mesmo dia ou no mesmo lugar”.

b)Proclamada independência nacional de forma unilateral pelo MPLA, veio a euforia da vontade de submeter tudo a nossa vontade de vencedores marxistas, anti-imperialistas, anti- fantoches do imperialismo, anti-mobutistas, etc,etc. Mas Neto, contra a vontade de praticamente todo o aparelho do regime levanta-se e voa para Kinshasa e encontra-se com o arqui-inimigo Mobutu para encetar a pacificação do Norte de Angola e de toda a região contígua, contando com a contribuição indirecta do grande Holden Roberto que desistiu do combate fratricida.

c)Toda a longa trajectória político-diplomática, com reconhecido mérito estadista de José Eduardo dos Santos que o sucedeu por morte (tão meritória quanto se desenrolou num período de consolidação da sua própria liderança política) que conduziu à pacificação de Angola e da região austral de África, foi uma herança de Neto que já se desdobrara em gestos audaciosos, prometendo rápidos desenvolvimentos.

d)O fraccionismo “empeliano” de 1977, talvez tenha sido a maior fonte de manchas que afectaram a trajectória de Agostinho Neto, com certeza, por causa de frases emotivas, num momento de sentimentos incontroláveis.

Neto morreu dois anos depois deixando sinais bem claros do seu pesar sobre os trágicos acontecimentos, com claros gestos de conciliação que não pode terminar, cujo epílogo, penso, temos negligenciado, no seio do MPLA, com prejuízos bem patentes nos fundamentos da construção de uma pátria reconciliada. Devo dizer que quando comentava comigo o caso “fraccionismo” e a atitude de Neto já no fim de seus dias, Joaquim Pinto de Andrade disse mais ou menos isso: “Assim era Neto: um cavalo intrépido que arranca por vezes sem olhar às consequências da sua correria endiabrada. Mas logo que se depara com a eminência ou com a consumação do seu equívoco, pára e procura reparar rapidamente os prejuízos.”

3-Enquanto escrevia tudo o que escrevi até aqui, tentava imaginar o que Neto diria hoje, em vez do “nós somos milhões….”, em nome de um partido que depois da guerra-fria é arrastado por alguns dos seus equivocados dirigentes a pensar que é o país; que é o povo todo que não é. Num país democrático nenhum partido representa o povo em termos definitivos. Não consegui imaginar o que Neto diria hoje diria, perante prisões de jovens, que arrastados ou não por outros partidos ou entidades, só estão a exercer um direito previsto na nova Constituição, perante equívocos tão claros como foi a alteração abusiva e autoritária da nossa constituição histórica, onde os sinais estão claros que se pretend(e)ia a eternização no poder de um grupo restrito de angolanos, à semelhança do que se passa em países cujos regimes estão a ser derrubados por revoluções inesperadas. É que eu analisei Neto, o circunscrito pela lei da vida, ao paradigma da guerra-fria.

4-Quem tem de inventar slogans acertados para os dias que correm somos nós os vivos, e os slogans tem de ser adaptados ao novo paradigma que tardamos a efectivar no nosso país: o paradigma de inclusão previsto na ordem jurídica nacional e nas leis internacionais a que estamos vinculados.

Hoje a situação é a seguinte: o MPLA está preso ao seu presidente e o país está preso ao MPLA, contra as previsões da própria Constituição. Por outro lado não há sequer qualquer disfarce que esta estrutura serve para proteger o enriquecimento ilícito e ostensivo de algumas poucas famílias. Como é que querem que jovens, perante exemplos mal ou bem seguidos do exterior, arrastados ou não por partidos da oposição que só estariam a fazer o que lhes compete, com ou sem alguns excessos, estejam a olhar para isso passivamente, num país que consagra direitos, liberdades e garantias constitucionais?

Por vezes fica-se com a sensação que se quer catapultar, à força, José Eduardo, a quem se pretende conferir um Nobel da Paz, para um papel histórico maior do que aquele que verdadeiramente lhe é possível, em dias bem diferentes dos irrepetíveis dias de Neto. Como diz a Bíblia, tudo tem o seu tempo.

Neste momento, depois da trapalhada inusitada que foi o reconduzir-se na longa Presidência do País sem uma eleição formal, quando nem rival tinha para o contrariar, em 2009, José Eduardo tem uma alternativa, diria, única embora com várias facetas entre as quais: acabar de imediato com as prisões de jovens que só reivindicam o lugar que lhes cabe na história dos dias que correm, que já se fartaram de serem submetidos a paradigmas antiquados; explicar como será reposto o nosso modelo político-constitucional histórico, arbitrariamente alterado; criar, por hipótese, um conselho nacional, verdadeiramente representativo, para se debruçar sobre a questão da utilização e distribuição da riqueza nacional de forma justa e transparente. Se assim fossem esclarecidas as coisas, é natural que continuaríamos a ter probabilidades de manifestações, mas não manifestações contra a natureza de um regime que de democrático só tem o nome e algumas aparências; manifestações que estão a transformar muitos dos nossos filhos em prisioneiros políticos, em pleno Século 21 e numa Angola formalmente democrática, há quase 20 anos.

Doutro modo, ao contrário de Neto, que no quadro do seu tempo e dentro da sua ideologia adoptada pelo Estado da época, se consagrou como um homem que resolvia problemas, o actual Presidente, com tanto espaço de manobra favorável, especialmente depois da paz de 2002, poderá acabar por passar definitivamente como o homem que cria problemas lá onde eles não existem. Assim não devia ser, para o bem da tão sofrida Angola, sobretudo para o bem dos nossos vindouros.

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