sábado, 5 de setembro de 2009

A Epopeia das Trevas (44)


Mentor trouxe uma caixa de cerveja vazia e Ulisses acomodou-se nela. Mentor abriu latas de sardinha e atum. Gritou para a vizinha que tinha gerador para que trouxesse cervejas frescas porque tinha visitas em casa, e que depois pagaria a conta. Pediu-lhe também para mandar um dos filhos procurar pão. Havia uma mesa pequena funcional que acomodou os convivas. Como a água escasseia sempre, as latas de conserva vazias serviam de pratos. Depois de algumas garrafas terem prestado o aquecimento mental, foram abandonadas no repouso do esquecimento tumular. Mentor aborda Ulisses:
- Ulisses… tu… em terra?!
- O meu nome é Odysseus! Não sei quem foi o parvalhão que inventou esse nome. A língua grega desvalorizou-se? Ah!.. Esses latinos com a mania de esconder a originalidade das civilizações. Copiam-nos e depois apagam-nos. Como se não existíssemos no tempo. Ainda bem que os arqueólogos da verdade nos desenterram, e provam a nossa maturidade. A verdadeira História está agora a ser contada. Os nossos deuses são iguais aos actuais, apenas mudaram de nome. Por mais tentativas que façam, acabam sempre por retroceder às origens. É isso que se chama História.
Interrompi porque achei que algo estava errado.
- Ulisses, não coma mais sardinhas, o atum é mais digesto.

Ele olhou-nos como se fossemos o mistério da natureza humana. Mostrou a melancolia do tempo passado nos barcos errantes que atrofiavam o destino do seu regresso, sempre nos mares traiçoeiros
- Há trinta anos que ando nesta vida. Tenho imensas saudades da minha terra, da minha Penélope, da minha família. Acho que a Penélope já arranjou outro. Custa-me a acreditar que ela aguente as comichões do luar das noites. As paredes vaginais devem estar derretidas, porque Vénus a contempla. Sinto imensos ciúmes dos venusianos que adulteram Penélope, mas as minhas flechas serão certeiras. Quando chegar destruirei esse maldito planeta. Provocarei o caos no sistema solar. Ah!.. Mas que divindades são estas que separam marido e mulher, que se deleitam horrorizando o amor! Como poderei amar a Deus acima de todas as coisas? Se tenho que escolher entre duas divindades, Deus e Penélope, e como não me é possível amar duas entidades ao mesmo tempo, então escolho, quero amar apenas uma: para sempre amarei e mergulharei no néctar divino que Deus me deu. Não farei nenhum sacrifício, porque Penélope é o meu Deus do amor. Ela pode comer-me, banquetear-se com o meu corpo, com o meu espírito, quando e onde lhe aprouver. Quando se actua verdadeiramente no amor, o corpo e a mente somem-se… deixam de existir… pronto! Passam para uma dimensão desconhecida. Ficam a viver no planeta Etéreo, e dele não desejam sair. O corpo na terra, e a alma ligada por um cordão umbilical tão frágil, que uma qualquer ave bebé no seu primeiro voo indeciso o pode interromper. Amar é o mais poderoso dos sentimentos. É como um império que a qualquer momento rui. Onde há imenso poder, imensa fortaleza devidamente consolidada, os inimigos abundam, espreitam. As muralhas do amor são rompidas, não resistem à tragédia dos laços familiares. O amor está condenado a navegar, a ser transportado, carregado, a viajar no esforço das ondas do mar. E elas batem cada vez com mais força, invadem, perigam a segurança das nações. Advertem que o amor é restituído, deixando o que resta, após a invasão das águas imensuráveis terra adentro. Depois os choros, a tristeza da destruição dos pedaços dos jardins suspensos que aterraram na inundação previsível. As vagas quando chegam trazem ofertas, e no regresso acompanham-se por um grande coro cósmico, esquecem as oferendas, enrolam, e como uma mão gigantesca que se fecha, ainda fazem último esforço com um dedo, e levam para o abissal o feijão da tormenta humana. Onde há muito dinheiro há muita injustiça.

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