sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A Epopeia das Trevas (45)


Por momentos o silêncio imperou. A lua vista da única e pequena janela parecia flutuar ao acaso no céu. Teimava em desafiar, mostrar que a noite é efémera, e só lembrada porque lança abraços sonolentos, hipnóticos. Até um guerreiro destemido como Ulisses não resiste aos tombos horizontais, do leito sem espaços conjugais. Ulisses vive momentâneo no sono, no sonho eterno de uma Penélope confrangedora. Mentor, menta a hortelã e aromatiza as palavras:
- Que saudades do meu amigo Ulisses. Vejo-o, sei que é um doce sonho. É mais uma das suas astúcias. És tu Ulisses… agora já entendo porque sentia o barulho agradável das ondas do mar… que nos acompanham com a sua melodia misteriosa desde o nascer até morrer. És tu a origem dos búzios, desse sussurro permanente encostado ao ouvido, e para sempre inalterável.
- Estou farto desta merda de vida e dos humanos, só quero voltar para a minha imortal Penélope.

Via-se que Ulisses se sentia como barco encalhado. Queria navegar mas não conseguia, porque os escolhos em terra não se comparam aos do mar. Estes são previsíveis, e os que estão em terra tem muitos tentáculos imprevisíveis. Veio bom vento a Ulisses.
- A muita idade traz muito cansaço de muitas aventuras. Chegou a hora do descanso. Quando regressar a Ítaca, espero que Penélope não me desgoste ao dizer-me que não tenho direito à pensão de velhice, depois de tanto trabalhar, depois de tanto lutar, guerrear e encher os bolsos dos outros. Isso será uma grande injustiça. Toda uma vida de trabalho… chegar a velho e não ter direito a nada. Mudam-se os tempos? Não! Quem os muda, é para aumentar a fome que antes existia, mas agora não há mares que se lhe comparem. Sempre contra a maré…de modos que não vi nada de novo, de baixo, e à superfície dos oceanos. Uma coisa vi em terra, uma coisa que nunca pensei ver: a maldade e a fome aumentaram tanto, que nem Zeus o pode quantificar. Assim, que Zeus me perdoe, e Apolo também… mas com tanta fome, como é que vou crer e amar o meu Deus?

Percebia-se que Ulisses enfunava as velas, à espera de ventos de boa feição para fazer-se à vela, na fuga constante do mar para terra, da terra para o mar. Há mar de sargaços, em terra há muitos homens de negócios. Ulisses sabe que o destino do homem é a desumanização.
- As civilizações são maremotos. Emergem e submergem… aparecem e desaparecem. É este o destino trágico do ser humano. Quando nasce é inofensivo. Mais tarde, rodeado pelas forças do mal, instrui-se para destruir. Não faltam malfeitores, professores das ciências diabólicas. Nunca confiem os sentimentos a ninguém, porque nos tempos que correm serão escarnecidos. O ser humano só entende, só responde com a linguagem da violência. Proclama o maldito extermínio da espécie, mas nem todos perecerão. O sábio humanista sobreviverá, depois edificará um mundo novo, livre de malditos. Deixai-os abominar, reinar neste tempo, porque no próximo dilúvio jamais reinarão. Quando surgir no horizonte uma pomba branca cheia de luz resplandecente, é o sinal para os exércitos das trevas avançarem. Virão com cruzes de sangue nos seus tecidos, e as suas espadas serão invisíveis. Um grande terror cairá sobre as nações, que serão desfeitas, e um grande lago vermelho, da cor do sangue, cobrirá a superfície da Terra. As crianças correrão ao encontro das suas mães, e não as encontrarão. As aves ficarão tingidas de vermelho, ninguém escapará do fogo divino.

Apetecia-me chamar-lhe profeta apocalíptico Ulisses, mas contive-me. Receava que a fúria de Aquiles o invadisse. Ulisses dá duas punhadas violentas na mesa. Ouve-se o regresso dos tiros, e os ladrantes cães. Ele ri-se, e fala para as ondas do luar, que de velas desfraldadas inundam a noite:
- Estalajadeiro, a cerveja tremula. Ainda nos falta muito para chegarmos além das profundezas da terra.

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