quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A Epopeia das Trevas (47)


- Vencido no jogo ebriático do álcool mas não convencido. Para liquefazer… escrever, dizem que é importante ter um estilo e utilizar metáforas. Quando inventaram a pólvora diziam a mesma coisa. Na era do nuclear, inventaram outras contendas. No tempo em que o pensamento domine a matéria, não gostarão dos raios luminosos extraordinários: «porque o tom azulado deste pensamento está muito carregado, a tonalidade daquele pensamento rosa está demasiado clara, o matiz desse pensamento vermelho foge à cor do sangue.» Os editores continuarão a perseguir-nos, dirão: «o estilo e a metáfora das cores não tem harmonia na estrutura, falta-lhes carácter». Sempre escravos da vontade deles. Estes são os verdadeiros ditadores benévolos. Só a sua ponderabilidade é imanente. Enfim, nenhum poder que se preze apoia intelectuais. Nos intelectos reside o prazer da resistência vital. Quem disser que a escravatura acabou é um sonhador. A democracia dos escravos é a revolta.

Ulisses mergulha a mente, docemente nos mares espumosos, superficiais cristais oceânicos. Sucede-se uma praia que se deleita com a nudez horizontal de Penélope. A ondulação melodiosa sobe e desce transparecendo a areia que encosta, refrescando o desejo da fremente epiderme. Penélope senta-se, enche as mãos de areia e passa-as pelos seios que avolumam, depois afunda-as na púbis, na vagina da leal ausência. Olha longínqua para o infinito oceano, e desprende-se:
- Meu esposo, nos mares onde navegas é fácil enfrentares a fúria das ondas. Em Ítaca não suporto as ondas da intempérie humana que me perseguem. Os dias passados são perdidos, irrecuperáveis. Tudo muda. Só o bater das ondas do mar permanece imutável. Se as pessoas fossem assim…
Ulisses cheio de vocação na terra emocionada usa o cansaço da rouquidão.
- Mas não são, nunca serão!
- Mas gostam dos momentos dessas semelhanças… conduzem-se como focas.
- Conduzem-se como loucos, vivem em carros loucos, em loucas estradas, que se altercam loucamente. Destarte é a civilização.

No barco, cinco homens do serviço de estrangeiros aguardavam-nos pacientemente. Mentor e Ulisses percebem a trapalhada da incongruente vadiagem estacionária. Um, cozinha as palmas das mãos em banho-maria, retempera-as pronto a servir-se. Soturno, explana manhoso:
- Nós facilitamos a entrada ilegal de estrangeiros, para depois à saída facturarmos.
Com dolo determinado exigiram cinco mil dólares. Mentor demoveu-os numa baixada de dois mil.
Mentor e Ulisses estão a bordo. Mentor convida-me:
- Vem! Tu e nós na patera, rumo a Gomera… depois Ulisses deixa-te em Ítaca.
E fui.

A Natureza continuava a pintar com tinta de água. Os seus pincéis pareciam violoncelos nos vidros da janela. A água corria, parecia que tinha pressa em chegar ao seu destino. Queria distrair-me, e a distracção é a corrupção da mente.
Andar à corda, a cirandar sem trigo para joeirar… a fome é uma questão política. Os políticos dividem os trigais entre si. Nas ruas, os vendedores revendem as sobras do PIB. Esta vida tresanda a bebida. Lembra, incontestável campeonato de barris de pólvora alcoólica, fermentada na imensidade inquisitorial. Paira, ressente-se o provável canto monótono do regresso às armas, à morte, à destruição.
Exportadores de petróleo, importadores de álcool. Escravos clonados no sono, do sonho escravo de dezoito quilombos. Frustrados no aroma pantanoso da liberdade. Sem formação, o escravo liberto prossegue na escravidão. Submisso no céu inundado de nuvens negras do FMI.

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