sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Sered. Campo de concentração nazi que parece de Luanda




Do outro lado, ouvíamos a dor, os gritos, o pânico de quem vai morrer gaseado. As primeiras pessoas a morrerem eram quase sempre as mais baixas, as crianças, não pelo gás venenoso, mas por esmagamento. Imagino vagamente, o que devia ser o pânico daquelas pessoas.
Depois da minha passagem pela água da vida, fui retirar os corpos que estavam estendidos no balneário ao lado. Vinte minutos depois da morte, ainda sentia um cheiro intenso e venenoso, que me fazia lacrimejar. Foi aí que conheci os irmãos Frank e Darcy Segal, um de quinze anos e outro de sete. Os três éramos encarregados pela limpeza de corpos do nosso bloco e de mais oito blocos adjacentes. Frank e Darcy tinham estado em Sered na Eslováquia, onde perderam os pais.

Frank parecia um anjo, era alto com olhos azuis e um cabelo possivelmente preto. Darcy, o mais novo, era um miúdo muito esperto e também de olhos azuis. Muitos corpos tivemos de carregar no mês de Novembro onde o inverno começava a ser o nosso maior inimigo. O Inverno começava a aproximar-se a passos largos. Estava à porta mais um Inverno rigoroso. Mais implacável que as forcas, que os fornos era o frio de Theresienstadt. Dizimava milhares de idosos. Um dia desses onde o Inverno se tornava impiedoso, os SS pegaram num velho moribundo e penduraram-no numa árvore. Eram já altas horas da manhã e estavam aproximadamente doze graus negativos em Theresienstadt. O velho, nu, foi regado com água fria pelos nazis. Umas hora depois estava morto, congelado. A explicação para tal acto foi dada por um oficial, atarracado e gordo. “- Ele estava com calor! Parece-me que agora está mais fresquinho.”

Às cinco da manha, estavam milhares de pessoas em pé, em frente do pobre homem. Tirámos as boinas e baixamos as cabeças. Começou tudo a rezar. Diante de nós estava um velho, mas mais importante, diante de nós estava a morte da moral. Disse bem alto, que diante de nós estava o Deus que em tempos tínhamos adorado, mas que agora morrera. Pendendo numa árvore aquele corpo parecia uma imagem eclesiástica. Voltei costas e dirigi-me para o meu bloco, pensado como era possível acreditar num Deus naqueles momentos. Os dias em Theresienstadt foram penosos. Frank conseguia sempre arranjar uma comida suplementar, trocando dentes de ouro que roubava do amontoado de ossos nas valas comuns. Ouro pelo pão, pela vida. Seis meses depois, já não sentia o cheiro. Estava a trabalhar com os irmãos Seagal na produção de um gás chamado, Zyklon B e na continuação do trabalho anterior. Devido à minha produção de Zyklon B, as mortes tinham, assim, a minha assinatura e isso revoltava-me.

Houve dias que punha as culpas em mim e aquela mão pequenina de Darcy na minha perna a dizer-me para não chorar porque a culpa não era minha, era a minha única salvação. A produção desse gás revelou-se fatal para Darcy, que muito novo e muito frágil, morrera intoxicado. Foi Frank, sob o sorriso de dois guardas, que levou o seu irmão até à sua última morada. Com uma cara em lágrimas e com uns olhos sem vida fez a caminha arrastando o seu falecido irmão. Chegou à vala, deu um beijo na sua estrela de David e no seu irmão. Ele sentia-se realmente só, sem pais e sem a pessoa que mais amava, o seu irmão, não tinha forças para continuar. Eu completamente abatido não tinha forças para o ajudar. Estava vazio, sem esperança. Depois desse dia parecíamos dois zombies naquele campo. Houve noites que me apeteceu morrer, mas pensava em Eva e isso dava-me forças para continuar mais um dia.

Apercebi-me que todos nós pelo desgosto ficamos com as mesmas expressões; a boca sempre semi aberta e com os olhos de quem já chorou um rio. A 7 de Junho de 1942, transportei o corpo de Frank para o cemitério de Theresienstadt, a vala. Frank não tinha sido gaseado, enforcado ou mesmo queimado vivo. Frank tinha morrido de desgosto. Tentei puxar por ele, mas ele estava muito fraco, não comia pois sentia uma dor imensa na sua alma. Acabava assim a vida de uma família, sucumbindo o seu elemento mais vivo, Frank. Morria uma grande criança, dizimava-se mais uma cabeça sonhadora. Agora estava sozinho dentro de um mundo esquelético. Sentia saudades de Eva. Imaginava coisas terríveis e pedia, hipocritamente, a Deus que a ajudasse. A primavera não tinha força para fazer crescer uma só flor no campo de Theresienstadt. Nunca vi estrelas num céu impregnado de um fumo espesso e preto. Numa noite de primavera os SS e os seus cães entraram no meu bloco, cento e cinquenta pessoas incluindo eu, fomos escorraçados até ao corredor principal do campo. Estávamos juntos das forcas. Senti-me com medo, mas no entanto, era aquilo que desejava, morrer. Só pensava que a minha dor iria ter fim.

Fomos postos em cima de uma cadeira. Milhares de pessoas, gritavam: “Tende Piedade! Eles são também humanos!”. Entre gritos de misericórdia ouvia as suas rezas. Cada um de nós tinha ao lado um SS e um cão. Existia uma suave reacção de todos nós, mas quem podia fazer frente aos SS com cães, com apenas 45 quilos. Parecíamos sacos de cimento a serem carregados. Puseram-me a corda ao pescoço. Parecia que tudo estava a acontecer muito devagar. Ao meu lado estava uma criança de nove anos a olhar para os lados e a chamar, chorando, pela sua mãe.
- De vocês todos, só cinquenta sairão daqui, para trabalhar numa fábrica dearmamento em Plazow. – Dizia o Major do campo.- Que a sorte esteja convosco. Dizendo isso, cem cadeiras foram retiradas com um pontapé. Estremeci e como quem se afoga, tentei inspirar fundo. Segundos depois tudo tinha acabado. A criança que se encontrava ao meu lado, morreu meia hora depois. Era muito pequena e pesava treze quilos, o seu pescoço não partiu. Ficou na corda a espernear, morrendo assim asfixiada.

Quanto a mim, depois de me tirarem da corda e depois de ter contemplado aquele espectáculo, desmaiei. Quando acordei, estava a caminho de Plazow nos vagões que me eram já tão queridos, pelo menos nada me aconteceria enquanto me encontrasse em viagem.

vascoribeiro177@hotmail.com. Páginas Pessoais www.mat21.cjb.net
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