Luanda - As manifestações espontâneas e relâmpagos, sem prévia comunicação às autoridades competentes, não estão definidas nem pela Constituição de 2010 nem pela Lei de Reunião e Manifestação como crimes. Não sendo crimes na República de Angola, elas não podem constituir fundamento para a repressão por parte das polícias.
Fonte: Club-k.net
A marcha iniciada no Largo da Independência e que tinha como destino o Palácio Presidencial, em si e só por si, não constitui crime punível pelas leis angolanas.
As manifestações dos jovens auto-intitulados “revús” (revolucionários) têm sido promovidas num contexto de contramanifestações organizadas e realizadas pelo partido no poder. Têm sido organizados e realizados comícios, espectáculos musicais; têm sido escritos artigos de opinião e feitas entrevistas em órgão de comunicação social contra as ideias e manifestações dos “revús”. O mote da intolerância do actual regime foi dado pelo engenheiro José Eduardo dos Santos em Abril do ano em curso na abertura da reunião do Comité Central do partido de que é o líder.
No dia 3 de Setembro, no Largo da Independência, havia uma forte presença de contramanifestantes no seio de uma manifestação constitucional e legal, a dos jovens “revús”. Mesmo depois de a contramanifestação no seio da manifestação constitucional e legal em curso se ter tornado evidente, os agentes da Polícia Nacional de Angola, uniformizados, no local, contrariamente ao dever a que estão obrigados constitucional e legalmente, praticando uma omissão, não protegeram os jovens “revús”, que tinham comunicado previamente às autoridades competentes a realização da sua manifestação, contra os contramanifestantes, ou infiltrados.
A preconizada manifestação espontânea (marcha) dos jovens “revús”, do Largo da Independência até ao Palácio Presidencial, protegida pela Constituição e pela Lei de Reunião e Manifestação, foi abusivamente interrompida pela Polícia Nacional de Angola antes de chegar ao seu destino, com o concurso de ou agentes à paisana ou de uma milícia armada privada, que usou da violência física brutal e desproporcionada para o efeito. Este acto da Polícia Nacional de Angola, sim, constitui um crime à luz do ordenamento jurídico angolano.
A violência que teve lugar no dia 3 de Setembro foi ou permitida ou induzida ou provocada por agentes da Polícia Nacional de Angola uniformizados e polícias à paisana armados ou por milícias privadas armadas em sintonia ou com a cumplicidade de agentes uniformizados, no contexto de um clima mais geral de intolerância por parte de órgãos do Estado, partido no poder e comunicação social do Estado em relação aos promotores da manifestação do dia 3 de Setembro.
Se durante a manifestação tiver sido cometido o crime de injúria, calúnias e difamação, os atingidos podem intentar uma acção judicial para fazerem vingar os seus direitos ao bom nome, honra e consideração. No entanto, tal não pode servir como móbil para a prática de outros crimes por parte de camaradas e amigos dos ofendidos.
Para todos os que se interessam pela questão das manifestações espontâneas e relâmpagos, eis o parecer do jurista Rui Ferreira, actual Juiz Presidente do Tribunal Constitucional da República de Angola, emitido em 1996 e publicado no Número 1 da Revista da Ordem dos Advogados de Angola:
«IV
Finalmente, é-me solicitado um parecer sobre se o exercício de manifestação «sem autorização» constitui crime previsto na Lei n.º 16/91 de 11 de Maio.
A questão posta nestes termos, está defeituosamente formulada porque, ao contrário do antes demonstrado (cfr. supra, parte III) admite que as manifestações estão sujeitas a prévia autorização. O que está errado.
Mais correcto é assim perguntar se a falta ao aludido «dever legal de informação» constitui crime previsto e punido na Lei 16/91 de 11 de Maio.
Intencionalmente o legislador entendeu por bem não penalizar a falha ao cumprimento daquele dever.
Os comportamentos que aquela lei criminaliza e pune são, tão só:
- O porte de armas em qualquer reunião e manifestação (cfr. art.º 14, n.º 1);
- Os actos que impeçam, tentem impedir e interfiram no livre exercício do direito de reunião e manifestação (cfr. art.º 14.º, n.º 2), ainda que praticados por autoridades públicas e à revelia das disposições e limitações da Lei (cfr. art.º 14.º, n.º 4);
- A realização de manifestações interditas (cfr. art.º 14.º, n.º 3) sendo que como tal só é possível entender: aquelas em que haja participação de indivíduos considerados por interditos de realizarem tais actos, a saber, militares, forças militares e militarizadas (cfr. art.º 1.º, n.º 2);
- A nosso ver também aquelas manifestações cuja realização tenha sido proibida (de forma escrita e fundamentada) pela competente autoridade pública nas situações excepcionais previstas na lei (cfr. art.º 7.º, n.º 1).
Só estes comportamentos constituem crime previsto e punido na Lei 16/91. A omissão (propositada ou despropositada) ao cumprimento do dever de comunicação da realização de manifestação não é de per se criminalizada e punida pela letra da lei.
Dissemos atrás que essa foi intencionalmente a escolha do legislador. Essa omissão (ela em si) não foi criminalizada sobretudo por três ordens de factores:
- Em primeiro lugar porque, em abstracto, dessa omissão não pareceu resultar a afectação teorética de outros direitos ou bens constitucionais de igual ou mais valia;
- Em segundo lugar, porque tal comunicação não é elemento constitutivo do direito constitucional à liberdade de manifestação;
- Em terceiro, porque o exercício desse direito não depende, não está vinculado, a prévia autorização de autoridades estaduais.
Admitir tanto a exigência de prévia autorização como criminalização da falta de comunicação seria um contrasenso dogmático e jurídico face às opções de fundo do nosso legislador constituinte em matéria de alcance, regime e garantias dos direitos fundamentais individuais plasmados na Lei Constitucional.
Assim e por força do princípio nullum crimen sine lege não é de ter-se como crime a falta ao c[u]mprimento do dever de comunicação da realização da manifestação.
Essa falha constitui de facto uma omissão que viola a lei. Porém para o nosso legislador não decorrem daí consequências penais. A não ser assim não teriam cobertura legal formas típicas de exercício do direito de manifestação, nomeadamente as manifestações públicas espontâneas e relâmpagos tão usuais entre nós.
A única sanção penal que é possível fazer decorrer das manifestações que não tenham sido previamente comunicadas resulta do art. 14.º, n.º 5: os seus organizadores e participantes responderem pelos «abusos» que sejam cometidos durante ou por causa da manifestação, desde que tais abusos configurem autonomamente elementos constitutivos de tipos legais de crimes ou, nos termos gerais, façam incorrer em responsabilidade civil.
Porém, a punição civil e criminal destes ditos «abusos» não é específica das manifestações sem prévia comunicação. Ela é extensível aos abusos cometidos em toda a sorte de reuniões e manifestações (cfr. art.º 14.º, n.º 5).
Concluindo: não é necessária autorização prévia para o exercício do direito de manifestação; é necessária «prévia comunicação» para a realização de manifestações; a lei 16/94 [lei 16/91] não criminaliza a falta ao cumprimento desse dever pelo que ela não pode ser tida como crime à luz dos padrões de valores que informam o nosso ordenamento jurídico-constitucional e penal. […]». Reproduzimos apenas a parte atinente às manifestações espontâneas e relâmpagos, contida nas pp. 234-236.
Sem comentários:
Enviar um comentário