segunda-feira, 1 de março de 2010

A Ocidente do Paraíso (10). Os soldados aproveitavam-se da miséria e em troca da sopa as mulheres prostituíam-se.


O pior era quando o filme acabava e de regresso a casa punha-me numa correia louca porque o homem invisível perseguia-me. Mas não desistia quando chegava o dia da sua emissão, e lá ia assistir mais uma vez. Novamente no regresso a casa o terror aumentava, as correrias também, porque não existia iluminação pelo caminho nem nas habitações. Nunca pensei que um filme me metesse tanto medo.

A minha mãe disse-me que no quartel dos militares, não me lembra o nome, à noite davam sopa e que ia lá muita gente, na maioria mulheres. Deu-me uma panela. Quando lá cheguei já se encontravam algumas mulheres à porta, outras estavam num local próximo, escuro, resguardado pelo arvoredo. Ouvi murmúrios de prazer, aproximei-me e vi que os militares estavam em cima delas. Os soldados aproveitavam-se da miséria e em troca da sopa as mulheres prostituíam-se. Entretanto um soldado viu-me e correu comigo dali. Perguntou-me onde estava a minha mãe, mostrava nervosismo, aflito por pensar que ela estaria ali. Disse-lhe que não, que não estava, que vim sozinho. O soldado tratou de me despachar, encheu a minha panela, e disse-me que se eu quisesse mais sopa, teria que vir com a minha mãe.

A minha mãe gostou da sopa, eu, a minha irmã e os meus dois irmãos também. Ainda estava bem quentinha. Disse-lhe que para nos darem mais sopa ela teria que lá ir. E ela foi, mas quando se apercebeu do que os soldados queriam nunca mais lá apareceu. Confessou-me depois: «Que para conseguirem sopa as mulheres tinham que fazer poucas-vergonhas, e eu não sou mulher para fazer isso.»

Aos nove anos acabei a quarta classe da instrução primária. O Horácio, meu colega habitual das brincadeiras de caubóis, tinha cerca de dezoito anos, arranjou-me emprego na construção civil. Falou com o meu pai. Disse-lhe que como eu tinha acabado de fazer a quarta classe, também me poderia arranjar emprego e o meu pai concordou.

E lá fui na companhia do Horácio para o meu primeiro emprego. O local ficava muito distante, tinha o nome de Telheiras, onde edificavam muitas construções. Primeiro tínhamos que chegar ao quartel do Regimento de Artilharia, depois apanhar uma azinhaga e passar por inúmeros terrenos baldios. Quando chovia parecia um milagre chegar ao local de trabalho, porque os pés enterravam-se de tal modo na terra barrenta, que para os retirar constituía um pesado fardo.

No início custou-me a entender o porquê de uma criança com nove anos sujeitar-se a trabalho tão pesado, que consistia em carregar baldes de massa pelas escadas do prédio em construção, para que o pedreiro edificasse as paredes com os tijolos que eu também carregava. Mas logo notaram que eu não conseguia carregar um balde de massa. Perante o esforço descomunal que efectuava, e perante o olhar do encarregado da obra, alguém gritou que a criança não podia com o balde, e assim passei a carregá-lo pela metade. Tive sorte, porque já estava para ir para o olho da rua. Em pouco tempo cheguei a ajudante de pedreiro, já edificava paredes com tijolos perante a satisfação do meu mestre.

Depois passei a ajudante de ladrilhador, profissão mais digna e mais bem paga. Antes disso levei várias chapadas na cara. Um pedreiro zangado comigo por ter passado para esta profissão, considerou isso como um acto de desprezo da minha parte. Depois do almoço regado com muito vinho tinto, resolveu atirar-me do segundo andar para cima da massa no rés-do-chão. Perante o meu choro e ameaças de que iria queixar-me ao meu pai, ele ainda me deu mais bofetadas.

Imagem: discosetc.blogspot.com/2009/09/h-g-wells-1897

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