quinta-feira, 4 de março de 2010

A Ocidente do Paraíso (13). Como é que eu poderia estudar, se já há dois meses não me pagavam os salários.


Com esforço e poupanças e também com a ajuda do meu pai, que foi promovido no serviço – passou a bagageiro na TAP – o que lhe permitia já algum desafogo financeiro. Ele dizia que não era o dinheiro do vencimento que o sustentava, mas as inúmeras gorjetas que os passageiros lhe ofereciam pelos serviços de carregamento das suas bagagens.

Várias moedas que depois de juntas no fim do mês cambiavam-se. Também conseguiu crédito num merceeiro amigo de Moscavide. Ele enviava-nos todos os meses um carro bem carregado de comida. O leite e o pão eram colocados à porta todos os dias bem cedo. Também a pagar no fim do mês.

Comprei a colecção completa, salvo erro da Porto Editora, dos livros Quer Saber? Tratava de muitos temas desde, a História do Dinheiro, até a Mozart, Beethoven, etc. Comecei a aprender muita coisa, a entrar no desconhecido, a sair da ignorância. Depois também comprei a colecção completa do Fantomas, mas só li metade devido à repetição cansativa da personagem, e lamentei o dinheiro gasto. Entretanto Wanzeller muda-se para Queluz, nas proximidades de Sintra, um local muito mais calmo. Uma habitação com apenas dois andares, mas com grande arrecadação na cave e um, pode-se dizer, vasto quintal, que lhe permitia aí instalar a sua fábrica.

Mais um jovem foi contratado e incumbiram-me de lhe ensinar as técnicas de fabricação. A produção aumentou e os clientes também, especialmente as molas para a roupa que os clientes muito apreciavam, pois que eram de boa qualidade. O nosso principal cliente era a Polux, na Rua dos Fanqueiros. Tinha direito a frequentar e a almoçar na casa, a conviver com a família, pois consideravam-me como um filho. A Noémia, licenciada em germânicas, ensinou-me a contar em três línguas, de um até dez. Em alemão, inglês, e francês. Queria despertar-me para as línguas estrangeiras.

De posse da minha colecção Quer Saber? Comecei a devorar um a um os muitos volumes que compunham esta pequena enciclopédia do saber. Andava sempre com um deles na mão, e quando lia perdia-me, alheava-me de tudo. De tal modo me concentrava na leitura que me esquecia do que tinha de fazer.

Para comprar a matéria-prima para abastecer a fábrica em arame, ia ao Rocha Pereira Amado & Latino, na rua da Prata, e os plásticos na Polux, na rua dos Fanqueiros. Depois ia para a estação do Rossio apanhar o comboio com destino a Queluz. Assim que entrava no comboio e me sentava, a primeira coisa que fazia era ler, e de tão hipnotizado algumas vezes ia parar numa ou noutra estação mais adiante e uma vez fui parar a… Sintra.

Perante estes acontecimentos os Wanzeller começaram a mostrar muita preocupação. Deram-me muitas reprimendas, lições de moral mas acabaram por se cansarem, e disseram-me finalmente:
- Assim como és… distraído… nunca serás ninguém na vida! O conselho que te damos é que estudes, e tenta formar-te porque só assim te darão valor. Se não mudares o teu comportamento serás sempre um frustrado, um revoltado contra a sociedade!
Ouvi em silêncio e fiquei a pensar como é que eu poderia estudar, se já há dois meses não me pagavam os salários.

Imagem: http://www.leiloes.net/LIVRO-DE-LEITURA-DA-3-CLASSE-1958-PORTO-EDITORA-4-ED,name,35442079,auction_id,auction_details#largeimg

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