sábado, 20 de março de 2010

A Ocidente do Paraíso (27). E depois de um regresso vertiginoso que encetámos à Idade Média a partir de...


Quando os outros intervinham interrompia-os sistematicamente porque os seus argumentos eram convincentes. Deixava-os, assim posso dizer, prostrados no terreno das ideias, tal era a força de conhecimentos que possuía. A nossa admiração por ele aumentava a cada dia. Já ninguém ousava fazer-lhe frente. Passou a nosso líder incontestado. Acho que se aproveitou desta circunstância quando anunciou sem meias medidas, como uma ordem:
- Tive uma ideia… vamos fazer teatro… começaremos com Ionesco. Já consegui reunir alguns actores. Os ensaios começarão dentro em pouco. É importante que saibam que quem nunca esteve nos bastidores, nunca saberá o que é teatro, por isso estudem muito bem as obras de Ionesco!
Aproveitei para saber qual seria o meu papel. Não me surpreendeu:
- Como és o fusível vais ficar com a responsabilidade da iluminação. Os ensaios começarão na próxima semana.

Seguindo as instruções fui para o Instituto Superior Técnico estudar uma peça de teatro amador que salvo erro tinha por título, As Guerras de Arlequim e o Mangerão, de Bertolt Brecht. Tentei o impossível. Não consegui aprender quase nada. Os meus conhecimentos eram muito limitados. Mas insistia. Agarrei-me aos Sequestrados de Altona, de Sartre, convencido de que quanto mais estudasse e quando chegasse a hora da nossa representação teatral, decerto teríamos êxito considerável.

Mas o Quitério, como todos os seres humanos, não resistiu aos encantos do amor, da São. Ela era muito encantadora, disso todos sabíamos. Nunca namorou com ninguém, e foi uma grande surpresa para todos quando isso aconteceu. Não era muito bonita. Tinha a barriga um pouco inchada que parecia estar no início de gravidez. Os seios contrastavam com o resto do corpo. Eram pequenos para corpo tão avantajado. Mas o seu rosto era agradável. Como a beleza de uma estátua grega a que alguém tivesse eliminado o resto do corpo. Contudo, sem se esforçar, conseguia manter qualquer diálogo com quem quer que fosse. Surpreendia-me tal talento porque nunca a vi ler nenhum livro. No fundo parecia quase uma Afrodite renascida nos Olivais-Sul.
Houve festa na sua casa quando o Quitério foi pedir a sua mão, para surpresa geral. Ela que tinha sido desprezada por todos, que já, pode-se dizer, estava quase a envelhecer e o seu pai amiúde confessava essa preocupação, porque ninguém gostava nem queria a sua filha.

E de repente o Quitério conseguiu que a São fosse o alvo de todas as atenções. Até passou a ser a nossa Deusa. Quando ela surgia no nosso meio, ele pegava-lhe nas duas mãos e as beijava ternamente. A partir daí deixou de conviver connosco, só ocasionalmente. Ela, quando ele foi chamado para cumprir o serviço militar, apresentou-se vestida à princesa medieval. Parecia um filme do Rei Artur e dos seus Cavaleiros da Távola Redonda. O cabelo longo guardado nas costas, encimado pela mais atraente grinalda de flores. Um vestido transparente que lhe chegava aos pés, e deixava a descoberto o seu corpo que ela queria que todos vissem, que era sensual. O decote apertado mostrava os seios virgens, ávidos para as aventuras do amor.

No fundo pretendia demonstrar-nos que era bela, e que a sua beleza seria sempre para o Quitério. Sempre à espera dele. Que ele regressasse vivo da guerra do Ultramar.
O Quitério sentenciou:
- E depois de um regresso vertiginoso que encetámos à Idade Média a partir de...

Imagem: http://w-weddinggowns.com/wp-content/uploads/2010/01/medieval-wedding-gowns-2.jpg

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