terça-feira, 23 de março de 2010

A Ocidente do Paraíso (30). Mas que mal fiz eu para me enviarem, longe da minha casa para aqui?


O único colega com quem conseguia manter algum relacionamento era o Dário, mas não conseguia aprofundar as conversas devido às suas limitações. Apresentou-me um vizinho da sua terra natal. Fiquei curioso, porque achava difícil dois vizinhos serem incorporados na mesma unidade. Eram de uma rivalidade confrangedora. Passavam o tempo a dizer mal um do outro. Quando me dei conta já era confidente de ambos. Passavam o tempo nisso e acabei por chegar ao ponto de já não os poder suportar. Evitava-os com muito custo. Mas num ambiente tão fechado em que éramos obrigados ao convívio, constituía um exercício insuportável. A minha mente sofria com tal perturbação.

Para trocar ideias tentei algumas vezes aproximar-me de algum oficial. Mas desisti. Era proibido um oficial manter relacionamento com um recruta. Na cantina não havia televisão. Livros, revistas, biblioteca era impensável. O fundamental era manter a soldadesca na ignorância, no embrutecimento. Nalguns fins-de-semana quando me dava conta estava só. Todos saíram. Tentava apanhar boleia perguntando aos meus companheiros se havia um lugar disponível para Lisboa. Mas não, todos os lugares estavam ocupados. Outros iam para a estrada, tentavam boleia e conseguiam. Não tinha paciência para isso. Tentava adaptar-me a esta nova vida que me impuseram. Mas por mais que tentasse não conseguia.

Ia à cantina e comprava uma sandes com algumas rodelas de chouriço. O pão era bem confeccionado e o chouriço muito saboroso, melhor do que em Lisboa. Acompanhava com uma gasosa e enquanto comia meditava na minha mãe, no meu pai, nos meus irmãos. Oh! Quantas saudades do Café do Frederico, do Mota, do Quitério. E então uma grande tristeza me invadia, sem ninguém para conversar. À medida que o torpor enchia o meu coração, sentia grande revolta, e pensava: Mas que mal fiz eu para me enviarem, longe da minha casa para aqui? Que tinha eu que ver com as aventuras dos senhores da guerra? Quando terminaria este pesadelo? Quanto tempo mais demoraria este sonho? Mas o que é que eu estou aqui a fazer!? E a Belita… tanto tempo sem a ver. Será que a veria mais? Algumas lágrimas começaram a inundar a minha face.

- Olha, mandaram-nos formar para fazermos os testes psicotécnicos. – Informou-me o Dário.
Eram uma série de perguntas escritas às quais respondi de acordo com os meus conhecimentos. Pessoalmente pensei que não lhes dariam qualquer valor.

- E amanhã vamos ter tiro real. – Informou mais uma vez o Dário.
Antes da minha incorporação, um alferes que terminou o serviço militar, deu-me dois livros do curso, COM-Curso de Oficiais Milicianos em Mafra. Um intitulava-se, Técnica do Tiro, e o outro instruía sobre a guerrilha e contra-guerrilha. Sobre este, dei-lhe pouca atenção, porque já estava familiarizado com o tema devido às leituras que fazia sobre a guerra do Vietname de Jean Lartéguy. Prestei atenção ao do tiro, especialmente no capítulo, como efectuar um bom tiro. A arma deve ficar bem fixa no ombro. Tira-se a folga do gatilho. Suspende-se a respiração e mira-se o alvo. Se a arma estiver em condições o tiro será certeiro. Foi assim que procedi quando chegou a minha vez na carreira de tiro. O alvo foi devidamente atingido.
- Pelo menos vais para atirador especial. – Garantiu-me o Dário.

Imagem: http://www.decitre.fr/gi/58/9782258064058FS.gif


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