quarta-feira, 3 de março de 2010

A Ocidente do Paraíso (12). Dava-me uma lata de um galão e uma mangueira, e apontava para outro Austin Cooper S


Depois, através de pequenas engrenagens metálicas procedia-se à feitura das molas, dos cabides e dos suportes para os ferros de engomar. O dono desta original fábrica doméstica era descendente de judeus holandeses, os Wanzeller. O segredo já vinha de família. Vieram para Portugal fugitivos da Holanda por causa dos nazis e aqui ficaram. A esposa Licínia, a filha Noémia, e o filho Carlos Alberto eram donos de grande cultura e intelecto. Na realidade devo-lhes a iniciação nos grandes mestres da literatura mundial.

Nova mudança de casa. Finalmente e definitivamente para Olivais-Sul, Encarnação, arredores de Lisboa, com quatro andares. Eram as casas prometidas por Salazar para os pobres, que mediante pequenas prestações mensais, ao fim de vinte anos seriam entregues aos moradores. Um bairro bonito, bem estruturado, bem arborizado, com floresta e piscina.

Com grandes espaços livres, um liceu, escola, banco, supermercado, com um senão. Falta de mais espaços para actividades desportivas. Os jogos de futebol disputavam-se na rua asfaltada, à noite. Quando um carro circulava éramos obrigados a interromper a partida, e o carro nívea, azul e branco da polícia perseguia-nos a toda a hora.

O Jorge, mecânico, dizia-me para aguardar que já ia buscar o Austin Cooper S de um cliente, e depois ia-mos dar umas voltas por aí. Só que tínhamos que roubar gasolina, porque estes carros consumiam muito combustível. O Jorge, conhecedor das redondezas sabia onde estariam os abastecedores com gasolina da melhor qualidade, no bairro da Encarnação. E lá pelas três da manhã quando todos estavam a dormir, dava-me uma lata de um galão e uma mangueira, e apontava para outro Austin Cooper S, chamando-me a atenção de que: «Esse aí está bem abastecido, e o tampão é fácil de abrir.»

Aproximava-me então para o reabastecimento. Tudo estava bem iluminado, e receava que se alguém me descobrisse, não sei como seria, pois que era muito fácil ficarmos encurralados. Mas nas várias vezes que abastecemos por este método, por sorte nunca fomos surpreendidos. Depois mergulhávamos na noite. O Jorge ia sempre ter com a namorada dele, ali para os lados de Moscavide. Ela estava sempre à espera dele, sempre preparada a qualquer hora da noite.

Ela gostava imenso dele, e como tinha uma irmã, vinham as duas muito felizes porque iam passear de carro, mas tinham que voltar antes do amanhecer para iludir os pais como se não se tivessem ausentado de casa. Depois parávamos num local bem escondido, e o carro ficava com roupas espalhadas por todo o lado. Fazíamos amor até ficarmos cansados, e depois as nossas namoradas procuravam os biquínis, os soutiens e o resto da roupa. Tinham uma grande preocupação de arranjar os cabelos e alisar a roupa amarrotada.

Depois íamos comer pão quente com manteiga e beber uma garrafa de leite nas bombas de combustível da SACOR, na Encarnação, que também tinha restaurante. Muito rápidos íamos levá-las a casa, depois era eu. O Jorge ensinou-me que para entrar em casa sem ninguém dar conta, tinha que meter a chave muito devagarinho na fechadura e ir rodando lentamente, ao mesmo tempo que segurava no puxador da porta, levantando-a para evitar as folgas. Assim evitava-se o ranger e o chiar gótico quando se abre uma porta. Depois em passos muito leves ia para a cama. As nossas namoradas não necessitavam destes cuidados, porque entravam pela janela que antes deixaram encostada. Tudo ficava em segredo, só nós é que sabíamos.
Imagem:
http://www.azmengineering.com/sales/classic-cars/cars/images/AustinCooperS-Mk1/120-2024_IMG.jpg

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