A primeira coisa que nos mandaram fazer foi formar na parada, e aprender um novo estilo de marcha. Tínhamos que levantar os joelhos bem alto e bater com as botas no chão com força. Este estilo de marchar era idêntico ao dos comandos, e não compreendia o porquê. Também pouco ou nada me interessava. O aprumo era rigoroso. A barba sempre em dia, não se admitia a mínima falha no barbear. A boina com o emblema da aranha que identificava como pertencente à arma das comunicações de engenharia, ficava ligeiramente caída para a direita na cabeça, e o emblema tinha que ficar sempre na vertical. A gravata e a camisa sempre impecáveis. O blusão também, com todos os botões abotoados. As calças, seguras a meio dos atacadores das botas, sempre bem engraxadas. O rigor era tal que nas revistas de saída até passavam a mão pela face para ver se estava bem barbeada.
O nosso comandante de pelotão era um aspirante, quase sempre substituído por dois primeiros-cabos. Começámos a nossa primeira aula de morse com o cabo Silva, onde se notou algum alarido, como é natural. O cabo Silva advertiu-nos imediatamente que a instrução era muito rigorosa, e qualquer indisciplina, o aluno levaria imediatamente com o RDM, Regulamento de Disciplina Militar, ou iria para a prisão.
Primeiro, começámos com aulas de morse em velocidade lenta, com o tempo aumentou, de tal modo que se tornava muito difícil escrever as letras dos sons que ouvíamos.
O café Arcádia ficava próximo, e tinha bilhar. Era aqui que passávamos as noites. Estava sempre a abarrotar. Era graças a nós que fazia bom negócio. Foi aqui que conheci o Neves. Ele participava num debate em que defendia o fim da guerra colonial. Pela argumentação notei que era culto. Contou-me depois que lhe faltavam algumas disciplinas escolares, e por isso enviaram-no para o contingente geral. Na caserna surpreendeu-me com dois livros. A História me Absolverá do Fidel Castro, e O Livro Vermelho de Mao Tse-tung. Os livros circulavam de mão em mão com a maior discrição, senão seríamos todos presos. Receei que alguém nos denunciasse este acontecimento, mas não, ninguém o fez. O colega da cama próxima era catequista. As suas intervenções tinham sempre cunho religioso, um fanatismo doentio. Devido a isso, eu e o Neves passámos a chamar-lhe Padre, e toda a caserna também. Com o Neves e a nossa oratória, púnhamos o homem, pode-se garantir, nas raias da loucura.
Os debates viraram verdadeiras batalhas religiosas… o Padre perdia sempre. E quando ouvíamos gritos era o tarado do Madragoa com a sua equipa, que antes encerrava as portas da caserna e com uma vítima imobilizada, baixava-lhe as calças e depois arrancava os cabelos junto ao pénis um a um, e contando-os perguntava-nos se eram suficientes ou não. Na próxima vítima ser-lhe-iam arrancados mais cabelos que a anterior, porque era necessário homologar o recorde.
Imagem: Arca de Água, Porto.
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