segunda-feira, 29 de março de 2010

Savimbi o Kiamangongo, num trabalho de Sousa Jamba



"O homem que não assume o passado não tem futuro"

SAVIMBI. Ele foi o pior inimigo de si próprio
Via Email. Fonte:EXPRESSO

A vida de Savimbi dividiu-se em três fases.
Na fase inicial foi um produto do sistema colonial português

Jonas Savimbi era um homem altamente complexo e cheio de contradições. Gostava muito de livros e da educação, mas matou muitos intelectuais que divergiram dele. Afirmava ser um lutador pela democracia e pela economia livre, mas criou escolas para quadros, onde eu próprio me licenciei, que ensinavam o maoismo. Dizia-se um democrata, mas não tolerava as críticas. Para alguns angolanos, Savimbi é a encarnação do diabo; para outros, é um dos líderes mais inteligentes, mais determinados e mais corajosos que Angola teve até hoje. Qual será, então, a verdade?
(Nota: Savimbi foi colaborador activo das Forças Armadas portuguesas contra o MPLA no Leste de Angola)

A vida de Jonas Savimbi pode ser dividida em três fases: o Savimbi da etapa inicial, o Savimbi da etapa intermédia e o Savimbi da etapa final. O da etapa inicial foi um produto do sistema colonial português. Nasceu em 1934 em Munhango, estação da linha de caminho-de-ferro de Benguela, onde o pai era chefe de estação - na época, um lugar impressionante para um africano. Savimbi sofreu a humilhação por que passaram muitos negros angolanos, inteligentes e ambiciosos. Tinha antipatia pelos «assimilados» e por alguns mulatos que faziam então parte da classe privilegiada. (Mais tarde, Savimbi iria atenuar a sua hostilidade em relação aos brancos, criando grandes amizades com alguns deles).

Em finais dos anos 50 obteve uma bolsa de estudo para Lisboa a fim de estudar Medicina, mas, depois de muitas perseguições movidas pelas autoridades portuguesas, fugiu para a Suíça onde estudou Ciências Políticas. Voltou para África, aderiu à FNLA e tornou-se seu secretário para os Assuntos Externos. Viajou por todo o mundo e estabeleceu ligações com muitos nacionalistas africanos incluindo Jomo Kenyata, do Quénia, e o falecido Felix Houphouêt-Boigny, da Costa do Marfim. Savimbi foi para a China, onde conheceu o Presidente Mao, e adoptou a revolução chinesa como modelo. Regressou clandestinamente a Angola e, em Dezembro de 1966, levou a cabo o primeiro ataque, em Luau, na província do Moxico. Em 1974, por ocasião da revolução em Lisboa que derrubou o regime colonial fascista, a UNITA, de Savimbi tornou-se num dos três movimentos de libertação que competiram entre si pelo apoio dos angolanos. Os outros dois eram a FNLA e o MPLA. O MPLA seria o vencedor da guerra civil que se seguiu à partida dos portugueses.

O Savimbi da etapa intermédia vai de 1975, quando os apoiantes da UNITA foram forçados a fugir das cidades para o mato, até 1983, quando, com a ajuda dos americanos e dos sul-africanos, o movimento atingiu o seu apogeu. O Savimbi da etapa intermédia era carismático, eficiente e amado pelos seus colaboradores mais próximos.
Sem Savimbi a UNITA teria desaparecido nessa altura. Savimbi conseguiu, habilmente, atrair muitos professores, enfermeiros, mecânicos e burocratas, que vinham das terras altas centrais para o mato a fim de participarem na administração dos territórios que controlava e que, a certa altura, abrangiam grande parte do território de Angola. O Savimbi da etapa intermédia falava em nome dos angolanos pobres que sempre tinham sido marginalizados.

Milhares de jovens, especialmente do grupo étnico ovimbundo, viam em Savimbi um pai adoptivo. Aqui estava, finalmente, um homem que infundia respeito em alguns círculos internacionais e que também sabia relacionar-se com os mais humildes camponeses angolanos.
Savimbi era igualmente eficiente a descobrir e a estimular talentos. As figuras que estavam nas posições cruciais subiam não através de nepotismo, mas sim pela sua competência. Se este Savimbi tivesse sido Presidente de Angola, o país teria tido uma história mais risonha. Contudo, o Savimbi da etapa intermédia começou a manifestar características que o haviam de marcar até ao fim da vida matando opositores políticos, por vezes por razões infundadas. Este Savimbi começou a ver-se como a encarnação da causa da UNITA e permitiu que um culto da personalidade se desenvolvesse à sua volta. Os músicos só podiam cantar canções em seu louvor; outros podiam escrever poemas desde que tivessem uma estrofe de glorificação do líder. Este culto foi estimulado por informadores ansiosos de estar nas boas graças do líder. Alguns deles viriam, mais tarde, a passar-se para o lado governamental.

O Savimbi da etapa intermédia também começou a abandonar qualquer ideia de liderança colectiva para o movimento. O destacado secretário para os Assuntos Externos, Orneias Sangumba, foi morto por ser alegadamente um agente da CIA. Apesar das ligações estreitas que acabou por estabelecer com americanos e sul-africanos, Savimbi nutria uma grande desconfiança em relação à CIA. Nessa altura, o então chefe do Estado Maior, Waldemar Chindondo, militar distinto que foi um dos primeiros oficiais negros do Exército português, foi igualmente morto devido a acusações infundadas. Kashaka Va-kulukuta, anteriormente um colaborador muito próximo de Savimbi, foi metido numa prisão e acabou por morrer de doença. Segundo a direcção do movimento - a qual toda a gente tinha de aceitar - figuras como Sangumba estavam numa qualquer região remota do território controlado pela UNITA. Mas era uma grande mentira.

A mentira, especialmente aos órgãos de informação internacionais, era possível porque Savimbi tinha o controlo completo do movimento. Tudo o que os seus seguidores faziam devia depender do facto de serem ou não leais à sua causa. A UNITA não tardou a desenvolver uma intrincada rede de informadores que reportavam sempre ao líder. Ele sabia tudo - pelo menos era isso o que as pessoas pensavam.
Em 1990, Savimbi entrou em litígio com Tito Chingunji, o seu secretário para Assuntos Externos, um homem igualmente brilhante, acusando-o de se ter tornado demasiado próximo dos americanos. Apesar de todas as suas qualidades, é difícil perdoar Savimbi pelo modo como se vingou da família de Chingunji: os outros três irmãos de Tito e os seus filhos foram executados.
Savimbi devia pensar que ia ganhar as eleições de 1992 e realizar o sonho da sua vida de ser Presidente de Angola, e que todos aqueles que ele tinha matado seriam esquecidos. Mas não foi isso o que aconteceu. A UNITA perdeu as eleições, disse que os resultados tinham sido fraudulentos e Savimbi e os seus colegas voltaram a pegar nas armas. Este período, desde 1992 até à sua morte, marca o Savimbi da etapa final.

O Savimbi da etapa final nunca se poderia ter adaptado a uma sociedade digna e com regras. Tratava-se de um Savimbi cuja única motivação era o poder e o controlo absoluto. Este Savimbi tinha pouco respeito ou consideração por aqueles que lhe estavam próximos - incluindo as suas mulheres e amantes. É um segredo por todos conhecido que Savimbi tinha uma intrincada vida doméstica. Os filhos tinham de lutar entre si para atrair a atenção paternal. Oficialmente tinha uma mulher, Ana Paulino, mas também uma série de amantes; estas teriam sortes diversas, tais como os membros do seu gabinete ou do alto comando. O círculo íntimo de Savimbi era como uma corte medieval: os cortesãos disputavam entre si influência e poder (principalmente para serem ouvidos pelo «rei») através de intrigas.

O Savimbi da etapa final também sabia lançar as famílias mais influentes umas contra as outras, através do seu sistema clientelar. Jonas Savimbi nunca se interessava pelo dinheiro em si. Isto talvez derivasse da sua educação de protestante. Contudo, estava mais interessado no poder do que naquilo que o dinheiro poderia dar a alguém. Um dos fracassos da UNITA foi o de ser um movimento cujo líder tinha ilusões de vir a governar um Estado. Ainda me recordo dos tempos em que os líderes da UNITA diziam que esta tinha tanto dinheiro que dava para envergonhar o tesouro de muitos países africanos. O próprio Savimbi gabou-se um dia numa entrevista que havia africanos que vinham ter com ele para lhe pedirem lições de economia. (Quem recusaria tais lições se, no fim, lhes era entregue um envelope com alguns diamantes?).

Claro que ninguém se atrevia a dizer que este tipo de comportamento não era digno de um líder. (Alguns dos comandantes mais jovens de Savimbi começaram a imitá-lo e acabaram por ter uma série de mulheres e filhos, alguns dos quais vivem agora em condições terríveis nos campos de refugiados na Zâmbia). É chocante como estes jovens comandantes começaram a imitar Savimbi em todos os aspectos - incluindo o modo como ele andava, falava ou dançava. Era estranho, por exemplo, ver um grupo de homens na casa dos vinte anos, todos calçando botas mexicanas iguais porque era assim que o líder gostava. Também começaram a copiar a sua inflexibilidade e tendência para personalizar todos os problemas.

É verdade que, depois de 1992, o Governo angolano tratou mal os apoiantes da UNITA em Luanda tendo sido assassinadas pessoas inocentes das etnias ovimbundo e kinkongo, apenas em consequência das suas origens. Contudo, depois de ambos os lados terem aceite, no acordo de Lusaka, que o caminho para a frente era a reconciliação, a importância que estava a ser dada ao estatuto do Dr. Savimbi fez passar para segundo plano o verdadeiro problema. Houve então momentos em que pareceu que a UNITA tinha estado no mato unicamente para dar um posto importante a Jonas Savimbi em Angola.

O Savimbi da etapa final era impiedoso e estava pronto a sacrificar centenas de vidas pela sua causa. Savimbi queria, acima de tudo, estar no comando - e este desejo de um controlo total tinha atingido proporções patológicas. Era também altamente caprichoso - e, face a diversos reveses militares, começou a assacar todas as culpas aos seus comandantes.
Cientes do futuro que lhes estava reservado, muitos deles acabaram por desertar para as fileiras do Governo, onde eram devidamente recompensados com postos aliciantes. Muitas famílias importantes da etnia ovimbundo, a maior de Angola, confiavam em Savimbi e entregavam-lhe os seus filhos. Por ocasião da sua morte, muitos destes falaram mal dele. Muitos perceberam que Savimbi queria implantar um estado totalitário em Angola. Não foi o Governo angolano enquanto tal que destruiu o falecido líder da UNITA; Jonas Savimbi foi o pior inimigo de si próprio. Isto explica a estranha apreensão da elite governamental de Angola na sequência da morte de Savimbi: agora que o papão nacional desapareceu eles terão de provar do que são capazes. Por exemplo, será que vão continuar a desviar a riqueza da nação para contas em bancos estrangeiros, será que vai haver uma verdadeira democracia nos assuntos do Estado?

Mas como é que Savimbi, o nacionalista empenhado, se transformou num potencial ditador africano? Há muitos anos que, como ovimbundo que sou, me interrogo como foi possível que uma pessoa que eu tanto admirei se tivesse transformado numa de quem me envergonho de dizer que fui colaborador.
Ninguém duvida de que era um homem extremamente inteligente, cuja capacidade de trabalho e boa memória o colocaram acima dos outros. Trabalhei durante pouco tempo como tradutor no gabinete de Savimbi - e não hesito em dizer que ele foi uma das pessoas mais brilhantes que conheci. Foi também muito corajoso até ao fim. Foi isto, inevitavelmente, que levou muitas pessoas - especialmente da etnia ovimbundo, a maior de Angola - a segui-lo. Contudo, ultimamente, muitos ovimbundos começaram a perder a fé nele. Isto não significa que tenham agora começado a aceitar a cleptocracia de Luanda - . com as suas passagens de modelos e sumptuosas mansões em Palm Beach contrastando com tanta miséria. O que acontece é que tinham seguido um líder com muitos defeitos e que lhes estava a sair demasiado caro.
Jonas Savimbi tinha profetizado em diversas ocasiões a sua morte. Num discurso na Jamba, então o quartel-general da UNITA no leste de Angola, disse que iria morrer de morte violenta. Em vida, Savimbi já se tinha tornado numa lenda. Na morte, poderá, para muitos dos seus ardentes apoiantes, tornar-se no perfeito mártir. Tanto a UNITA como o MPLA têm heróis - alguns são uma pura criação dos departamentos de propaganda - que disseram terem posto o interesse colectivo acima dos seus interesses individuais. No entanto, todos concordam que Savimbi se manteve fiel aos seus princípios - ou seja, a conquista do poder - até ao último momento. Não parou de disparar mesmo depois de sete balas se terem alojado no seu corpo.

Fotos: Revista EXPRESSO




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