sexta-feira, 5 de março de 2010

A Ocidente do Paraíso (14). A Rosa de Sharon com os seus seios a aleitar um esfomeado


A Noémia, perante o meu gosto de ler teve a ideia de me oferecer um livro. O meu primeiro livro de verdadeira leitura, a Antologia do Conto Fantástico Português. Li-o e reli-o, mas a pensar porque diabo me ofereceu ela este livro, tão diferente das leituras que até então tinha lido? Seria porque eu vivia no fantástico? No irreal? Ou teria ela, apenas ela, devido à sua formação em germânicas aperceber-se da minha personalidade? Por mais que tentasse compreender, o certo é que nunca o consegui.

Acho que era apenas para uma introdução à literatura portuguesa do conto fantástico. Para mim era um volume considerável, pois continha muitos contos de vários autores portugueses. Depois ofereceu-me outro livro, A Selva, de Ferreira de Castro, aqui sim, fiquei impressionado com a vida que este homem viveu e sofreu nos seringais do Brasil, e o mais surpreendente é que tinha apenas a quarta classe, era um autodidacta.

Fiquei muito pensativo desde esse momento. Afinal existiram portugueses que não tiveram meios para estudar, e conseguiram ser grandes escritores. Isso deu-me uma grande força na alma. A Noémia ofereceu-me outro livro, As Vinhas da Ira, de John Steinbeck. Admirei nesta obra a descrição que o autor faz de um cágado, e a Rosa de Sharon com os seus seios a aleitar um esfomeado, mas sobretudo as descrições da grande depressão que para mim eram novidade, pois que me iniciava no conhecimento das coisas.

Já colocava algumas questões pertinentes aos Wanzeller. Já começava a ter um rumo político, já sentia alguma revolta, já sentia alguma percepção perante as diferenças de classes sociais. As minhas questões eram respondidas com: «que eu deveria estudar».

Acontecia que os meus salários continuavam a não serem pagos. Quase há um ano… Quando o Wanzeller recebia o dinheiro dos clientes na minha presença, dizia-me que tinha de pagar os estudos dos filhos e o luxo de casa, porque parecia mal se não vivessem assim. Também tinha que comprar boas roupas devido à condição social que aparentemente ocupavam. Dizia-me para esperar um pouco mais, que no próximo fornecimento aos clientes pagaria a minha dívida. A situação mantinha-se, o meu pai disse-me para sair desse trabalho porque me estavam a explorar. Transmiti a preocupação do meu pai ao Wanzeller, e de imediato ele disse-me que iria falar com o meu pai.

Foi, e deixou um cartão de visita em poder do meu pai, que já ia em mais de um ano de dívida, uma pequena fortuna, e no cartão declarava o valor, e que se comprometia a pagá-la muito rapidamente. Implorava ao meu pai para que evitasse a todo o custo a queixa, a denúncia junto de alguém competente, porque não queria escândalos.

O meu pai concordou e passaram-se mais três meses e nada. Perante a exploração a que me sujeitavam e ainda o facto de constantemente me apelidarem de mariazinha, e insistirem que era um filho de casa, o meu pai insistiu para abandonar o emprego. Assim fiz, Wanzeller tentou convencer-me do contrário, afirmando que iria pagar dentro de três dias, o que não aconteceu.

Imagem: http://www.wook.pt/ficha/as-vinhas-da-ira/a/id/198622

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