sábado, 13 de março de 2010

A Ocidente do Paraíso (21). Mais tarde descobri que imitava o Fernando Pessoa… até na indumentária.


O António Eduardo Coelho da Mota era muito falador. Apresentava-se sempre impecável de fato e gravata. Alto e muito magro, de olhos largos, sempre barbeado e bem penteado. Sempre a perguntar ao Quitério qualquer dúvida que tivesse. Era muito agressivo e de carácter instável. Mudava de personalidade constantemente. Isso era devido a ser filho único conforme confessava. Os meus pais exigem muito de mim, lamentava-se. Uma coisa tínhamos em comum. O recenseamento militar e a mobilização para uma das colónias. Era necessário queimar o tempo que faltava.

Nesse pesadelo do tempo perdido das tardes, encontrava o Mota no Frederico a escrever num caderno. Escrevia muito. Com um chapéu e óculos sempre muito pensativo. Mais tarde descobri que imitava o Fernando Pessoa… até na indumentária. Outros jovens universitários apareciam ocasionalmente. Das conversas que mantinham, grande parte delas não entendia. Mas com o tempo fui aprendendo muita coisa com eles. O Quitério disse-me que devia ler muitos livros. Como ele ia à Biblioteca Municipal do Alvalade regularmente, disse-me para o acompanhar pois que lá podia trazer três livros gratuitamente e ao fim de quinze dias devolvê-los.

E foi assim que me reiniciei nos Grandes Mestres da Literatura Universal. As obras de Jorge Amado li-as quase todas. Mas o autor que mais gostei e creio que li tudo o que publicou foi, William Somerset Maugham. De estilo simples e humilde, muito viajado, com profundos conhecimentos, hábil narrador, honesto, dizia que escrevia para ganhar dinheiro, que conhecia mal a língua inglesa e que o seu êxito se devia aos tradutores. Impressionava-me os desfechos das suas obras. Especialmente, O Fio da Navalha, que habitou permanentemente na minha mente. A Biblioteca Municipal itinerante que funcionava num carro, também me permitiu muita leitura, porque aparecia próxima da rua onde habitava.

O Quitério e o Mota com outros intelectuais tiveram a ideia de fundar uma biblioteca doméstica que funcionaria na casa de um deles. Com jóia inicial e quotas mensais adquiriam os livros. Na realidade quem teve a ideia foi o Zé Luís. Era ele o chefe, destacava-se em tudo, no intelecto e cultura. Um jovem de fino trato, de educação refinada. Sempre muito simpático para quem quer que fosse. Tinha o hábito de cumprimentar sempre com um leve inclinar de cabeça. Quando surgia, instintivamente todos nos levantávamos para o saudar. Era directo e frontal. Tentei um diálogo com ele, na realidade queria impressioná-lo. Lia artigos científicos nos jornais, cortava-os e guardava-os, especialmente os do Eurico Fonseca no Diário Popular. Avancei com Von Braun:
- Você sabe que li um artigo sobre o Von Braun?
Você era o tratamento que ele dirigia a todos. Acho que pretendia manter uma certa distância.
- Ah Sim?! Então quem foi ele?!
- Sem ele não existiriam foguetões, não seria possível ir à Lua.
- Perguntei-lhe quem foi ele!
- Um alemão.
- Isso é cultura jornalística!
E como andava sempre com livros debaixo do braço, notei o seu olhar de censor romano.
- Muitos livros pouca sabedoria. Deixe de ler os artigos científicos nos jornais.
- Não tenho dinheiro para comprar livros científicos.
- Por isso mesmo deve ficar calado. Oiça as nossas conversas para aprender alguma coisa.

Imagem: http://oprincipiodoslivros.blogspot.com/2006/12/o-fio-da-navalha.html

Sem comentários: