segunda-feira, 15 de março de 2010

A Ocidente do Paraíso (23). Seria desta que iríamos todos presos, e acusados de malditos comunistas que até comem pessoas?


Numa manhã com o Quitério na baixa de Lisboa, na Rua do Ouro, ouvimos de repente um som que fazia lembrar as reses em louca correria como num filme de caubóis. Eram muitos estudantes que fugiam da polícia devido a uma manifestação. Tivemos tempo para nos refugiarmos numa porta, enquanto assistíamos à fuga desordenada do que parecia uma manada humana. Se não nos resguardássemos decerto seríamos esmagados. Quando a tormenta humana terminou, respirámos de alívio. De volta a casa íamos comentando o acontecido. Enquanto nos despedíamos o Quitério disse-me que depois do jantar nos encontraríamos no Frederico.

Quando cheguei o ambiente estava animado. Parecia um comício. Estava o Zé Luís, o Mota, o Quitério, a equipa toda. O Quitério estava agitado:
- Este país é uma merda. Não temos liberdade. Não temos direito a manifestar a nossa opinião. Se emitimos uma crítica somos logo acusados de comunistas. Se falamos contra a guerra das colónias somos presos pela Pide. Todos os meios de comunicação são censurados. Por causa de tudo isto somos o país mais atrasado da Europa.
O Zé Luís intervém.
- De facto isto está muito grave. Toda a nossa juventude está a ir para a guerra. Os campos estão a ficar abandonados. Muita gente está a dar o salto para a França e outros países. A ignorância aumenta e a miséria também. Por causa da política de Salazar e dos orgulhosamente sós, estamos nos três efes. Futebol, Fátima e Fado.
O Mota atalha pelo lado eclesiástico:
- Fátima? As aparições? Garantiram-me que se tratava de uma senhora que era amante de um alto senhor, e que combinavam os seus encontros no local onde os pastorinhos apareciam. Como este povo é ignorante e supersticioso, acreditam em tudo o que lhes dizem. A Inglaterra libertou-se das suas colónias. Deu-lhes a independência. Com a política que Salazar segue está a levar o país para o caos.
Alguém vê o futuro económico sombrio:
- Se ficarmos sem as colónias que será de nós? Vem quase tudo de lá. Ficaremos na miséria. E o petróleo também vem de lá!
O Zé Luís irrita-se:
- É ao contrário! Quem está a pagar a guerra somos nós. Os prejuízos são muito elevados. Apenas beneficiam meia dúzia de pessoas. Esta guerra já é um comércio. Não esquecer que o rei do aço nos EUA, já fez uma fortuna colossal com a guerra do Vietname. A Suiça é um país pequeno e vive essencialmente dos relógios e do turismo. Portanto não necessitamos das colónias. Devemos dar a independência, entregar o poder...
Alguém fez sinal para acabar com a conversa, e começaram a falar de futebol.
- Eu gosto muito do Benfica!
- Quem é que tem os resultados dos jogos?!

Esta súbita mudança de conversa deveu-se à entrada de um suspeito. O Zé Luís disse que era um bufo da PIDE. De facto o seu aspecto e a sua postura levavam a essa conclusão. Tinha cerca de quarenta e cinco anos. Chapéu meio enterrado na cabeça. Barrigudo e com um fato quase vulgar. O casaco tinha lapelas largas. Já me tinham dito que servia para esconder o distintivo. Rosto e olhar duros, que pareciam mostrarem algum ódio. No balcão disse algumas palavras, voltou-se e olhou para todo o lado. Veio ocupar precisamente a mesa ao nosso lado. Tomou um café. Começou a ler o jornal que trazia, A Capital. Fiquei muito preocupado. Aliás estávamos sempre com medo. Seria desta que iríamos todos presos, e acusados de malditos comunistas que até comem pessoas?

Imagem: http://albertofigueiredo.zip.net/images/nossa_senhora_de_fatima.jpg

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