segunda-feira, 30 de março de 2009

MARIO VARGAS LLOSA visita o Congo. Viajem ao coração das trevas (2)


É um homem todavia jovem, de família humilde, que custeou os seus estudos de medicina trabalhando como ajudante de um pesqueiro e numa oficina comercial em Kitangani. Já passaram dois anos sem ver a sua família, que está a milhares de quilómetros, em Kinshasa. O hospital, de 50 camas e 8 enfermeiras, moderno e bem equipado, recebe médicos dos Médicos Sem Fronteiras, da Cruz Vermelha e de outras organizações humanitárias, mas é insuficiente para a subjugante demanda que tem o doutor Tharcisse e as suas ajudantes trabalhando 12 e até 14 horas diárias, 7 dias por semana.

Foi construído pela Cáritas. A Igreja católica e o Governo chegaram a um acordo para que formasse parte da Saúde Pública. Não se aceitam polígamos, nem homossexuais, nem se praticam abortos. O salário do doutor Tharcisse é de 400 dólares por mês, o que ganha um médico adstrito à Saúde Pública. Mas como o Governo carece de meios para pagar aos seus médicos, a medicina pública discretamente privatizou-se no Congo, e os hospitais, consultórios e centros de saúde públicos na verdade não o são, e os seus médicos, enfermeiros e administradores cobram aos pacientes.

Deste modo violam a lei, mas se não o fizessem, morreriam de fome. O mesmo ocorre com os professores, os funcionários, os polícias, os soldados, e, em geral, com todos aqueles que dependem do Orçamento Nacional, uma enteléquia que existe na teoria, não no mundo real.

Quando o doutor Tharcisse se recompõe explica-me que, depois das violações, a malária é a causa principal da mortandade. Muitos deslocados vêm das alturas, onde não há mosquitos. Quando baixam a estas terras, os seus organismos, que não geraram anticorpos, são vítimas das picaduras, e as febres palúdicas dizimam-nos.

Também a cólera, a febre-amarela, as infecções. "São organismos débeis, desnutridos, sem defesas". Viver dia e noite no coração do horror não ressecou o coração deste congolês. É sensível, generoso e sofre com o mar de desespero que o rodeia. Desde a pequena esplanada dos arredores do hospital divisamos o horizonte de cabanas onde se apinham dezenas de milhares de refugiados condenados a uma morte lenta. "A medicina que todo o Congo necessita tomar é a tolerância", murmura. Estende-me a mão. Não pode perder mais tempo. A luta contra a barbárie não lhe dá trégua.

II – OS PIGMEUS. Devo aos pigmeus do Kivu Norte o terem-me livrado de cair nas mãos das milícias rebeldes tutsis do general Laurent Nkunda na noite de 25 de Outubro de 2008. Tinha chegado no dia anterior a Goma, a capital do Kivu Norte, e os meus amigos dos Médicos Sem Fronteiras, graças aos quais consegui fazer esta viagem, organizaram-me uma viagem a Rutshuru (a três ou quatro horas desta cidade) para visitar um hospital construído e administrado pelos MSF, que prestam serviços a uma grande concentração de deslocados e vítimas de toda a zona.

Na véspera da partida, o meu filho Gonzalo, que trabalha no ACNUR, telefonou-me desde Nova Iorque para me dizer que os seus colegas no Congo tinham-me prevista, para a manhã seguinte, uma visita a um campo de pigmeus deslocados nas redondezas de Goma. Adiei por um dia a viagem a Rutshuru e, por culpa do general Nkunda, que ocupou naquela noite esse lugar, já não o consegui fazer.

Os pigmeus, pese em serem a mais antiga etnia congolesa, são os parentes pobres de todas as demais, discriminados e maltratados por umas e por outras. Fiéis ao prejuízo tradicional contra o outro, o que é distinto, lendas e fofocas malevolentes atribuem-lhes vícios, crueldades, perversões, como aos ciganos em muitos países da Europa. Por isso, numa sociedade sem lei, corroída pela violência, as lutas, as invasões, a corrupção e as matanças, os pigmeus são as vítimas das vítimas, os que mais sofrem. Basta lançar-lhes uma olhada para sabê-lo.

EL PAÍS

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