quarta-feira, 18 de julho de 2012

É preciso tirar a Frelimo e o MPLA do poder. David Mendes. Grande Entrevista ao Canalmoz e Canal de Moçambique


– defende David Mendes, o “advogado dos pobres” em Angola, em Grande Entrevista ao Canalmoz/Canal de Moçambique. Ficou célebre ao processar criminalmente o presidente angolano, José Eduardo dos Santos, acusando-o de crime de peculato, isto é, de se aproveitar do cargo e do Estado em proveito próprio

Moçambique e Angola são governados por ditaduras comunistas

“Durante o tempo colonial nunca tinha ouvido falar de fuzilamentos, mas o primeiro impacto depois da independência foi o fuzilamento em praça pública. Foi assim em Angola e em Moçambique também. A vida não tem valor para o MPLA e a Frelimo.”

“Não estou preocupado que da próxima vez, quando chegar ao aeroporto de Maputo, digam-me: não pode entrar. Nós temos de afastar a Frelimo e o MPLA do poder. Os indivíduos do partido comunista angolano, o MPLA, e os indivíduos do partido comunista de Moçambique, a Frelimo, devem ser afastados, para os nossos países se desenvolverem de uma forma mais democrática e equitativa.”

“Vocês aqui (em Moçambique) têm os serviços de segurança e nós também os temos, como havia a PIDE-DGS. Andam a perseguir pessoas. Não dão liberdade às pessoas. Estes têm um comportamento pior do que os colonos.”

Maputo (Canalmoz) - Manuel David Mendes, ou simplesmente David Mendes, advogado e político, presidente do Partido Popular de Angola, é conhecido como “advogado dos pobres”, mas ficou célebre ao processar criminalmente o presidente angolano, José Eduardo dos Santos, acusando-o de crime de peculato.

Encontrámo-lo numa estância hoteleira da capital moçambicana e depois de muita negociação, aceitou abrir a boca e falar… e falou mesmo. Descreveu o regime de medo e exclusão social e económica, implantado em Angola pelo Governo do MPLA. Disse que Portugal está a ser colonizado por Angola, e agora é a 19ª província angolana. Criticou a comunidade internacional que está a ser silenciada pelos recursos naturais, convivendo e legitimando – e por vezes até financiando – regimes ditatoriais e corruptos em África. Quando convidado a falar de Moçambique, sem rodeios, afirmou que Angola e Moçambique são governados por regimes ditatoriais comunistas, que devem ser afastados do poder, seja nas urnas ou na rua, para permitir que os dois povos se desenvolvam. Melhor mesmo é ler a entrevista, que passamos a transcrever na íntegra em discurso directo:


Canalmoz/Canal de Moçambique (Canal): É político, advogado e activista dos direitos humanos, angolano. É também tratado por “advogado dos pobres”. Quem é David Mendes, numa auto-descrição?

David Mendes: Eu acho que sou um cidadão comprometido com o meu país, comprometido com as mudanças no meu país e particularmente comprometido com as pessoas pobres. Venho de uma família pobre, nasci num bairro pobre, cresci num ambiente de pobreza. Cheguei onde cheguei, conquistei espaço da forma que conquistei, então acho que tenho, no mínimo, a obrigação de retribuir aos meus irmãos, aquelas pessoas que sofrem, que não têm como sobreviver, que não têm acesso à justiça. Sinto a minha obrigação moral de retribuir todo o apoio que a sociedade me deu, para chegar onde eu cheguei. Numa só palavra, eu sou um cidadão comprometido com a cidadania.

Canal: Entre várias acções de notoriedade nacional e internacional que tem desencadeado em Angola, David Mendes ficou célebre ao apresentar queixa à Procuradoria-Geral da República contra o presidente José Eduardo dos Santos, acusando-o de crime de peculato, ou seja, desvio de fundos do Estado angolano para o exterior… Tem provas contra o Presidente?

David Mendes: Em África é muito arriscado questionar um chefe de Estado, e em Angola é igual. Você põe em causa a sua vida, põe em causa tudo o que projectou para si mesmo, porque estes regimes não são tolerantes. Tudo que para eles cheire à ameaça, respondem com violência e esta violência chega ao ponto de matar as pessoas.
Portanto, é um compromisso que eu assumi comigo mesmo de moralizar a sociedade. Foi o próprio presidente José Eduardo dos Santos que desafiou a sociedade. Foi ele que veio a público dizer que quem soubesse, que denunciasse, que apresentasse queixa. É óbvio que como eu sabia, como tinha provas, tomei a iniciativa. E para que não pensassem que era uma mera especulação, avancei com uma queixa-crime, e dando todos os elementos de facto para que a sociedade soubesse o que se está a passar.

Canal: O Procurador respondeu que não podia proceder à investigação, visto que a constituição angolana confere imunidade ao presidente. Ficou satisfeito com esta resposta? Não há quem julgue o cidadão José Eduardo dos Santos?

David Mendes: Na nossa qualidade de advogados, achamos a resposta do procurador inconcebível, na medida em que quem tem a capacidade de impulsionar um processo, é a procuradoria. O que a procuradoria podia ter feiro, seria pegar os factos e investigar. E confirmados os factos, remetia-os à Assembleia Nacional, pedindo a esta autorização para agir. Não se recusar. Porque quem deve investigar os factos é a procuradoria. Havendo uma denúncia de um cidadão, a PGR não pode dizer que não pode investigar.
No caso do peculato, este é um dos poucos crimes, à semelhança da traição, em que o presidente da República pode ser destituído. Não é o Procurador que destitui o presidente. Mas o Procurador, perante os factos, remete-os à Assembleia Nacional e esta deveria requerer que o presidente fosse destituído. Portanto, nós reclamamos à procuradoria.
E mais, para além de José Eduardo dos Santos, há outras pessoas que nós apresentámos como tendo cometido crimes. E se ele não investiga José Eduardo dos Santos, que investigue os outros. Depois se houver a tal conexão objectiva (com José Eduardo dos Santos), a Procuradoria remeteria o processo a quem com competência. Portanto, esta negação do procurador, para nós, é infundada.

Canal: Quer isso dizer que não desistiu do processo? Quais são os passos a seguir. O que vai fazer agora?

David Mendes: Não vou desistir. Como disse, nós apresentámos uma reclamação à PGR e se esta não responder à nossa reclamação, vamos apresentar directamente à comissão de reclamações e petições de cidadãos, onde vamos colocar a questão e, por outro lado, também, não nos inibe de irmos, quer ao Provedor da Justiça, quer directamente ao Tribunal Constitucional, por denegação da justiça. Porque sentimos que está a ser denegada justiça. A PGR ao recusar a nossa queixa, estaria a denegar a nossa queixa, por isso nós vamos continuar. Esgotados todos os mecanismos internos, é óbvio que não nos vão restar outros mecanismos que não seja recorrer à justiça internacional.

Canal: Num regime onde o presidente controla quase todas as instituições, quer seja pelo poder constitucional, quer seja pelo poder económico que detém, ao apresentar esta queixa-crime, tinha fé que pudesse avançar ou fê-lo por uma mera formalidade?

David Mendes: É preciso que ganhemos consciência de que estamos em época de mudança e ter a coragem de enfrentar um ditador. É um exemplo de mudança. Não é fácil, mas precisamos de dar exemplo à sociedade que temos que enfrentar os ditadores. Os ditadores não podem continuar a reinar sem que as pessoas façam alguma coisa. Eu me sinto nessa obrigação de fazer alguma coisa.

Canal: David Mendes é dirigente da ONG “Associação Mãos Livres”, que se bate pela defesa dos Direitos Humanos… como avalia a situação dos Direitos Humanos em Angola?

David Mendes: A situação dos direitos humanos em Angola, diria que está em dois pólos: um de desenvolvimento positivo e outro de desenvolvimento negativo. No pólo de desenvolvimento positivo há uma melhoria substancial das condições de vida das pessoas. Mas em contrapartida, há cada vez mais a limitação do exercício dos direitos políticos: São reprimidas as manifestações; Há perseguições políticas; O acesso à economia está limitado a duas famílias: a família Dos Santos e a família Vandunen. O resto é periferia. Então, quando falamos de direitos económicos e sociais, temos esses dois pólos. O acesso à economia está vedado à maioria dos angolanos e o acesso à política está vedado à oposição. 

Canal: Acha que Angola é uma democracia? 

David Mendes: Não, Angola não é um Estado democrático. Angola é um Estado de direito, porque tem normas jurídicas. Mas não é Estado democrático. É um estado de ditadura, sob capa de uma democracia multipartidária. Temos um presidente com 33 anos de poder, vai conquistar mais 5 e depois mais 5, pelo que pensa estar, no mínimo, 43 anos no poder. Você não diz que tem uma democracia quando, para ter um emprego, tem que ter um cartão do partido no poder. Quando você, para ter acesso ao crédito, tem que ter acesso ao cartão do partido no poder. Quando você não tem televisão privada, rádios privadas, quando jornais privados são todos ligados ao regime, não pode dizer que tem democracia. Você não pode dizer que tem democracia quando não tem poder de escolha. Em Angola não tem poder de escolha. Ou MPLA ou mais ninguém. Ou está com o MPLA ou é contra o MPLA. Esta é a teoria. Então quando está num país com esses limites, não pode dizer que está na democracia. A democracia não é só a pluralidade dos partidos políticos, mas sobretudo a alternância política. 

Canal: Angola é descrita como uma potência emergente regional, muito pela produção e exportação do petróleo. Até a sua cidade capital, Luanda, tem sido classificada em vários rankings como uma das cidades mais caras do mundo. Os angolanos gozam desse poder económico nas suas famílias, nos seus pratos, nas suas vidas?

David Mendes: Não existe. Existe uma promiscuidade entre o poder político e o poder económico. O poder económico e o poder político estão nas mãos da família Dos Santos e da família Vandunen. O resto é periferia. Angola é uma farsa de ponto de vista visual. Angola não tem um crescimento económico, tem crescimento de infra-estruturas. Luanda tem prédios, tem estradas em que o número de carros nem cabe, mas a periferia é uma miséria absoluta. É pior do que os países mais pobres da região. Angola tem um índice de pobreza extremamente alto. Luanda não tem água, não tem saneamento de meio base. As pessoas vendem uma falsa imagem de Angola. Aquilo que as pessoas vêm na televisão, é uma falsa imagem. Angola de verdade é uma Angola de miséria, onde a maioria das pessoas vive numa situação de miséria. O índice de crescimento económico do país, não é o índice de crescimento do bem-estar da população. Porque é grande a disparidade entre os burgueses, entre os detentores do dinheiro, os endinheirados e não ricos, porque Angola não tem ricos, mas tem endinheirados, que roubam dinheiro público e agora estão a comprar Portugal. Portugal se transformou na 19ª província de Angola. Porque há um grupo de endinheirados, dirigidos pelas famílias Dos Santos e Vandunen, que usam dinheiro público como se fosse sua lavra e fazem do dinheiro do Estado aquilo que lhes apetece.

Canal: Já disse que a “pobreza extrema é pior que no período colonial”, como explica isto agora que os angolanos aparentemente têm mais acesso à saúde, à educação, ao emprego, a infraestruturas sociais melhoradas?

David Mendes: Você sabe quantos chineses estão a trabalhar em Angola? Você sabia que quem ocupa a construção em Angola são chineses? Os angolanos não têm acesso à construção civil… até trabalhos básicos são tomados pelos chineses. Sabia que os portugueses retomaram todos os restaurantes e hotéis? Mais de 120 mil portugueses estão em Angola. Qual é o acesso que o angolano tem ao emprego. Não há uma estatística real para que se possa dizer que o angolano tem acesso ao emprego. É tudo mentira, tudo uma fantasia. O angolano não tem emprego. Antes se dizia que o problema do angolano era o fraco nível de escolaridade. Hoje Angola tem mais de 8 universidade privadas. Hoje tem centenas de jovens com licenciaturas em Angola e fora do País, mas não tem emprego. Mas o chinês e o português e o brasileiro chegam e têm o seu emprego e futuro garantido, que o angolano não tem.
Quando falamos que o angolano vive mal, dizem: “mas tem telemóvel”. Não há retrocesso no espaço e no tempo. Nós falamos é da comparação do nível de vida entre os governantes e os governados. No tempo colonial, o governado tinha um nível de vida não muito abaixo do governante, hoje, o governado está numa situação de milhares de quilómetros do governado. E mais, no período colonial, o governado tinha acesso ao governante. Entre nós, o governado não tem acesso ao governante. Há uma barreira. José Eduardo dos Santos sai à rua com uma segurança de mil homens. A cidade fica sitiada. Vê-se que não há uma relação entre o governante e o governado. No tempo colonial, não havia isso. No tempo colonial podia não comer a carne, mas tinha acesso ao peixe. Hoje você nem tem acesso ao peixe. Por isso, não pense que ter um telemóvel é sinal de estar a viver melhor do que no período colonial. Não! Os padrões de comparação são diferentes.

Canal: Isso não é saudosismo?

David Mendes: Não, não pode ser saudosismo porque quando Angola se torna independente eu tinha apenas 15 anos. Não posso ter saudades de coisas da infância. Não se diferencia muito a forma, por exemplo, de ter acesso ao ensino. Eu tive acesso à faculdade de direito porque tive o aval da JMPLA (Juventude da MPLA). Então, a discriminação é igual.

Canal: Esta discriminação continua hoje?

David Mendes: Hoje a discriminação é económica. Você para ter acesso à faculdade de direito é quase impossível. Na faculdade pública há mais de 10 mil concorrentes para 100 vagas. E nas universidades privadas você tem que pagar 250 a 350 dólares por mês. Só tem acesso aquelas pessoas cujos pais têm poder económico. Os que os pais não têm poder económico, não têm acesso à educação. Por isso está aí a discriminação. É visível…
Hoje em Angola ainda se estuda debaixo das árvores. Não vai dizer que no tempo colonial também estudavam debaixo das árvores. Era diferente. As condições económicas são diferentes. Angola é o segundo maior produtor de petróleo em Africa. O que nós fazemos com o dinheiro do petróleo? Para melhor controlar o petróleo, José Eduardo criou um fundo de petróleo, onde pôs um dos seus filhos como gestor? O que você está à espera? De um regime que não tem outro parâmetro de comparação senão a ditadura colonial, e ditadura muito extrema.
Se a PIDE-DGS andava atrás das pessoas, os nossos serviços de inteligência fazem a mesma coisa. Hoje todo o mundo tem medo de falar ao telefone, tem medo de andar em grupo… vivemos sob um regime de terror. Isso é pior do que o colonialismo. Eu era criança até aos meus 15 anos quando chegou a independência, e não se vivia sob terror. Hoje qualquer criança tem medo. Se o presidente estiver a sair, todos têm medo de vir à rua porque podem levar um tiro. O que é isso? É uma ditadura absoluta!

Canal: Em batalhas democráticas, a opinião da maioria é que conta. Estará a maioria dos angolanos farta do regime do MPLA? O que acha? E se realmente as pessoas estão cansadas do MPLA, porquê não retiram o MPLA do poder, por mecanismos constitucionais: o voto? 

David Mendes: A vontade popular pode ser manipulada. Estas são maiorias absolutas como as de Mubarak, ex-presidente do Egipto que ganhou as últimas eleições com mais de 90% dos votos, mas não terminou o mesmo mandato porque foi deposto pela população.
Quando você em época de campanha distribui dinheiro pelas pessoas, sem justificar de onde esse dinheiro sai. Quando em época de campanha força as autoridades tradicionais a vir ao seu comício, dando bicicletas, para lhes comprar a consciência, isso é manipulação, não é vontade da maioria. A maioria é impedida de exprimir a sua vontade. E se virmos, por exemplo, os próprios intelectuais têm medo de se exprimir. E se os intelectuais têm medo de se exprimir, o que espera de um vendedor da rua, de um cidadão simples?
Então, são vontades manipuladas. Há dias o MPLA disse que faria uma festa de milhões. Obrigaram as pessoas a ir ao comício. Obrigaram os alunos a ir ao comício, fecharam escolas, fecharam mercados, obrigaram as pessoas a irem para o estádio com as camisolas de José Eduardo e do MPLA. É uma maioria forçada, não é uma maioria de consciência.
Abra a televisão pública, a TPA, para ver o que há-de assistir. “O MPLA é que fez, o MPLA é que fez”. É tudo manipulação. O Estado não existe, não é o Estado que fez, é o MPLA. O Estado foi capturado pelo MPLA.
  
Canal: Existem estudos que mostram que em Moçambique e em Angola os partidos no poder, a Frelimo e o MPLA, respectivamente, capturaram o Estado. Por exemplo, as cerimónias do partido, aqui, são mais organizadas do que as do Estado. Nota-se isso em Angola? 

David Mendes: Nós estamos num Partido-Estado. O Estado é o MPLA. Não podemos ter receio de dizer isso. O MPLA tem primazia em tudo. Uma actividade do MPLA pára o país. Por exemplo, o dia 10 de Dezembro do MPLA é superior ao dia 17 de Setembro, dia do herói nacional. O aniversário de José Eduardo dos Santos é superior mais do que as festas do dia da independência. Está aí essa promiscuidade entre o partido e o Estado. 

Canal: David Mendes é político, inclusive já foi ministro no Governo do MPLA, mas decidiu sair do governo, agora age em defesa dos Direitos Humanos, é advogado bem-sucedido. Porque decidiu sair do Governo para a oposição? Há também quem o acuse de estar a usar a política para ganhar influência como advogado privado, é o caso de Bento Kangamba…

David Mendes: Bento Kangamba é um indivíduo que não tem nível. Bento Kangamba é uma das pessoas que não pode justificar o dinheiro que tem. Onde encontrou o dinheiro que tem? Não tem nenhuma fábrica, não tem indústria, não tem nada.
Eu vivo como advogado. A minha actividade remuneratória é de advogado. É de lá onde tiro o meu ganha-pão. Como activista dos direitos humanos, presto parte do meu tempo, senão mesmo a maior parte do meu tempo, nesta causa. Porque é um problema de uma causa. E nós os intelectuais não podemos nos abster das causas. O que eles querem é que eu me abstenha das causas. Eu não recebo do Estado. Vivo do meu dinheiro, dinheiro que eu ganho com muito sacrifício. O nível de vida que eu tenho, é graças ao meu empenho, graças à minha dedicação.

Canal: E então porque saiu do MPLA para militar na oposição?

David Mendes: É a minha forma de poder manifestar o meu descontentamento, de poder demonstrar que devemos mudar. Não é todos nos emprenhar no MPLA à espera duma benesse, à espera dum cargo, à espera de não sei o quê… É isso que Bento Kangamba não interpreta. Porque ele fora do MPLA não sobreviveria, então ele pensa que todos nós temos que estar no MPLA, como forma de transformar este Partido-Estado num partido que perdure por todo o sempre. Mas nós não estamos para servir um regime caduco. Nós estamos para derrubar este regime. E vamos derrubar este regime nas urnas ou na rua. De alguma forma nós vamos derrubar este regime.

Canal: É público que David Mendes tem sofrido ameaças e perseguições, e numa dessas entrevistas foi citado a dizer que isso resulta do “facto de continuar a resistir a negociar o silêncio”. O que é negociar o silêncio?

David Mendes: Negociar o silêncio é a prática de regimes corruptos como o nosso. Dão-te um valor económico elevado e você deixa de falar. É assim que calam jornalistas. É assim que calam activistas. Oferecem-te um bem material e tu largas a causa. Eu não estou a negociar o meu silêncio. Eu estou para lutar pela causa. Sejam quais forem as consequências.

Canal: Já lhe foi proposto algum bem em troca do seu silêncio, alguma vez?

David Mendes: Eu já denunciei isso, as tentativas de corrupção.

Canal: Há casos concretos que tem e pode mencionar?

David Mendes: Temos… e estamos a dizer que nos próximos dias vamos publicar um relatório onde tudo isso virá. Nomes e o que fizeram, incluindo jornalistas.

Canal: Não aceita mencionar em primeira-mão alguns nomes e casos concretos aqui?

David Mendes: Não, eu quero deixar. Eu vim aqui para repousar por causa de muito stress. Felizmente tenho muitas amizades aqui que me podem proporcionar algum conforto, aqui em Moçambique, longe de Angola. Vim para ganhar fôlego, sair daqui um pouco mais sereno e preparar o nosso próximo passo. Mas nós vamos publicar o nosso relatório sobre os escândalos em Angola, desde financeiros até narcotráficos e outros.
  
Os recursos tornam arrogantes os governos corruptos e vocês vão sentir isso
Canal: “Faz parte dos genes do regime ganhar com fraude e perpetuar-se no poder a qualquer custo nem que para isso tenha de hipotecar todo o petróleo para calar a comunidade internacional…”, são suas palavras numa entrevista ao “Folha 8”. Qual acha que é o papel da comunidade internacional em Angola?

David Mendes: Fui muito claro na minha carta ao presidente Obama, onde dizia que o petróleo não pode falar mais alto que a liberdade das pessoas, que a democracia. Angola usa o petróleo como meio de chantagem e as nações calam-se diante de petróleo.
No encontro que tive também com a chanceler alemã (Angela Merkel), em Angola, transmiti isso, que o petróleo não pode calar as grandes nações. No mínimo, ela garantiu que tudo faria para que a força do petróleo não calasse a Alemanha, mas países como Portugal, por exemplo, Brasil, e outros, a força do petróleo, cala essas nações. A União Europeia está a vergar perante o poder do petróleo de Angola.

Canal: O que pensa dos estados ocidentais que nos seus países não toleram dirigentes corruptos, ditadores e arrogantes, mas em África, e Angola especificamente, se aliam a um regime com evidências suficientes de ser antidemocrático?

David Mendes: É a tal política de petróleo, política de recursos. E acredito que actualmente Moçambique vive como vive porque depende muito da comunidade internacional, mas vocês hão-de sentir os efeitos de petróleo. Vocês hão-de sentir os efeitos dos recursos; Como o petróleo torna os governos arrogantes. É o caso de Angola. Os outros países como querem os benefícios dos recursos, deixam-se calar.

A “Princesa Isabel” (dos Santos) está a comprar tudo em Portugal… Angola está a colonizar Portugal
Canal: Como descreve a relação entre Angola e Portugal?

David Mendes: Hoje eu diria que Angola está a colonizar Portugal. Portugal para Angola é a nossa 19ª província. Porque a “Princesa Isabel (filha de José Eduardo dos Santos) está a comprar tudo em Portugal e Portugal está de joelhos para Angola. Portugal tem em Angola a sua subsistência. O futuro de Portugal passa por Angola. Por isso Portugal é agora a 19ª província de Angola.

Canal: Desde 25 de Abril de 1974, com o fim da monarquia em Portugal, já houve mudança de regimes inúmeras vezes. Em Angola são sempre os mesmos a governar. Acha que o povo angolano é especial, não gosta de mudar os seus políticos como faz o povo português, por exemplo?

David Mendes: Não. O povo angolano não é povo especial. Isso é o que eles dizem, a ditadura. Mas se os angolanos fossem um povo especial, José Eduardo dos Santos não precisava de sair à rua com mil homens. Tem medo de quê? Faz o que faz porque ele sabe que não é querido. O povo é obrigado pela ditadura.
Se somos um povo especial, é porque somos um povo que estamos a ser corrompidos pela música e pelo álcool.
Sabe quanto se paga em concertos musicais em Angola? Muito dinheiro… e sabe porquê se paga isso? Para entreter o povo e evitar que se revolte. Vocês se assistem podem ver que a televisão angolana começa e fecha com Kuduro, que é musica e dança. Isso é para alienar os jovens. Música e álcool é o que se faz em Angola. Não é porque somos um povo especial, é porque somos um povo que estamos a ser corrompidos pela música e pelo álcool. Isso faz com que esqueçamos, por um momento, dos nossos problemas, mas não porque o povo seja especial. Nós queremos a mudança e um dia vamos mudar.
Quando começaram as manifestações, primeiro foram três pessoas, depois 10 e depois 50 e hoje até indivíduos das forças de segurança, se manifestam. Porque não somos um povo especial.
Se ler os jornais oficiais, o meu nome aparece sempre como pessoa que está agitando, mas eu não agito. Eu sou apenas o exemplo de uma pessoa livre e estou preparado para por esta liberdade pagar com a própria vida, porque estamos a lidar com um regime que quando não compra a sua consciência, elimina-te fisicamente.

Luanda é um contentor de lixo
Canal: Angola tem mais de meia centena de ministros e vice-ministos. Sabendo o grande fardo que um ministro representa para o Estado, julga isso necessário num país onde há mulheres e crianças que morrem em partos caseiros por falta de maternidades?

David Mendes: Não é com a existência de meia centena de ministros que se pode demonstrar que há competência. Há compadrio. O nepotismo. É tudo no seio da família. Vão ocupando todos os ministérios para ocupar todos os espaços.
Mas o aberrante nem é isso. Você tem uma pediatria onde põe três crianças na mesma cama, mas estás a construir um monstro que é a futura Assembleia Nacional. Não há dinheiro para construir hospitais, mas há dinheiro para construir Assembleia da República, que é um monstro igual ao Capitólio americano. Você não teve dinheiro para construir uma universidade, mas por causa do CAN construiu 4 estádios que agora estão aí a adormecer sem nenhum valor. No Afrobásquete construiu 5 pavilhões, que estão aí a adormecer sem nenhum valor. Quer dizer, não se investe nas áreas prioritárias como educação e saúde.
Com tanto espaço que tem Luanda e Angola, você está a afastar o mar porque quer construir na Marginal. Quer fazer da Marginal algo moderno, enquanto não tem saneamento básico a menos de 5 quilómetros da cidade. Enquanto a própria cidade de Luanda não tem iluminação. Quer dizer, você tem hábitos ocidentais, quer mostrar uma cidade ocidental, quando na verdade você vive numa miséria absoluta. Luanda é um contentor de lixo.
Não fomos capazes de resolver problemas de saneamento de base, problemas de lixo, mas vê prédios de luxo a levantar, para acomodar o mesmo grupo de famílias e agora também, infelizmente, a alguns portugueses.

Canal: A sua vida política, como vai? O Tribunal Constitucional angolano rejeitou  centenas de assinaturas apresentadas pelo Partido Popular liderado por si. As eleições são já em Agosto…

David Mendes: Até ao momento que eu lhe falo, tive o último contacto com Luanda hoje e até aqui ainda não decidiram o futuro do meu partido. Quase todos os partidos já se decidiram qual é o futuro, uns participam, outros não. Mas seja qual for o resultado que vier, nós vamos continuar na política. Porque até hoje nós fizemos a política fora do Parlamento. Por isso nada nos vai prejudicar continuar a fazer política fora do parlamento. Concorrendo como não, entrando como não no parlamento, nós vamos continuar a fazer política.

Canal: Já disse “todos nós que nos assumimos publicamente que não somos do MPLA e que lutamos com todo o nosso esforço e inteligência para implantar em Angola um verdadeiro Estado Democrático e de Direito… somos tratados como angolanos de segunda”. Como explica isto, com factos?

David Mendes: Nós os que não fazemos parte do regime, as pessoas até têm medo de conviver connosco. Imagina, assaltam a sede do meu partido apresento a queixa à polícia e a polícia não se digna sequer a mandar alguém da polícia de investigação para apurar. Imagina um grupo de pessoas, que a coberto da televisão, vai à minha casa para se manifestar. Imagina o que é fazer manifestação numa casa de um cidadão, a coberto da televisão. A polícia é chamada a intervir, aparece, prende os ditos líderes da manifestação, mas quando vou à polícia, já os libertaram. Vão à minha casa queimam a minha viatura, e a polícia nada diz. O que é que se espera como resultado disso? É que se fosse cidadão da primeira, tudo isso não aconteceria, mas como somos a periferia…

Canal: Disse que há angolanos por conveniência, mas que basta atravessarem as fronteiras angolanas já são portugueses, brasileiros, russos… Quem são esses?

David Mendes: Os ditos empresários angolanos. Todos eles têm dupla nacionalidade. Saem contigo como angolano e chegam lá fora já são portugueses. Entram como angolanos e saem como portugueses. Só são angolanos porque Angola lhes dá recursos económicos. Angola para eles é só a fonte da riqueza….

Canal: Que são esses “eles”? certamente que tem nomes…

David Mendes: A família Dos Santos e a família Vandunen. São as duas famílias que dominam o país. E são as duas famílias que estão com cordão umbilical em Portugal, São Tomé, Cabo Verde, Guiné.

Moçambique e Angola são ditaduras comunistas
Canal: Certamente que sabe um pouco de Moçambique, este país irmão de Angola. O que acha que os dois países têm de comum, para além da história de um colonizador comum?…

David Mendes: É a simpatia. O povo moçambicano é simpático. É um povo espontâneo. É igual ao povo angolano. Os nossos regimes políticos não alteraram nada a forma de estar dos povos. Venho para Moçambique muitas vezes e não sinto muita diferença de Angola. Mas temos, como defeito, duas ditaduras. A vossa é talvez mais branda, menos violenta, ao que parece. A vossa aqui pelo menos engana que permite que haja jornais privados, rádios e televisões privados, mas a nossa nem sequer isso permite. E isso é próprio de regimes comunistas. A Frelimo é um partido comunista. O MPLA é um partido comunista. Embora venham agora com capa de socialistas, isso é uma farsa, são partidos comunistas. O seu comportamento é um comportamento do centralismo democrático, da obediência, do grande líder. Quanto o grande líder fala, o resto é periferia. Então, são dois regimes comunistas, que estão a governar de forma ditatorial, sem capacidade de desenvolver as duas nações. E se eles não saírem do poder, isso vai fazer com que os nossos países fiquem cada vez mais atrasados.

Os que nos libertaram acham que têm o direito de nos explorar porque nos libertaram

Canal: Há quem diga que há necessidade dos povos africanos se libertarem dos seus libertadores. Argumenta-se que os actuais dirigentes estão a agir da mesma forma como os colonos. O colono apenas mudou da cor, de branco para preto, mas o jugo continua… partilha da mesma opinião?

David Mendes: Os nossos libertadores, do MPLA e da Frelimo, pensam que nós temos uma dívida com eles. E nos fazem sofrer porque nos libertaram. E eles acham que têm o direito de nos explorar porque nos libertaram. Mas nós não lhes mandamos ir para as matas. Eles foram de consciência.
Vocês aqui têm os serviços de segurança e nós também temos, como havia a PIDE-DGS. Andam a perseguir as pessoas. Não dão a liberdade às pessoas. Estes têm um comportamento pior do que os colonos.
Durante o tempo colonial nunca tinha ouvido falar de fuzilamento, mas o primeiro impacto depois da independência, foi o fuzilamento em praça pública. Foi assim em Angola e em Moçambique também. A vida não tem valor para estes (MPLA e Frelimo. Matar foi a coisa mais natural. Estes nossos libertadores não têm a noção do mal que nos fazem.

Temos que afastá-los do poder para os nossos países se desenvolverem
Canal: Acredita que estes regimes podem mudar?

David Mendes: Nós temos que afastá-los do poder para os nossos países se desenvolverem. Eu não estou preocupado que da próxima vez, quando chegar no aeroporto de Maputo digam: não entre. Nós temos de afastá-los do poder. Os indivíduos do partido comunista angolano, o MPLA, os indivíduos do partido comunista Moçambique, a Frelimo, devem ser afastados para os nossos países se desenvolverem de uma forma mais democrática e equitativa. Não há outra maneira.

É preciso não ter medo

O nosso medo é a prosperidade deles. A nossa consciência de luta é o recuo deles. Então ganhemos consciência de luta. Temos que lutar pela nossa dignidade, pela dignidade do povo moçambicano, pela dignidade do povo angolano. 

Canal: O que deixa de mensagem para os moçambicanos que lutam para a edificação de uma sociedade mais justa?

David Mendes: É preciso não ter medo. Isso é importante. É preciso que cada um de nós se sinta livre. E se nós nos sentirmos com medo, não vamos a lado nenhum. Eles fazem com que vivamos no medo para não reivindicarmos os nossos direitos. É esse o grande problema.
Tal como em Angola, aqui vejo indivíduos com carros de grande cilindrada, mas quando vamos à periferia estamos a ver miséria. Mas que governantes são esses que não sabem que com o preço daquele carro poderiam pôr medicamento nos hospitais?
Que governantes são esses que não pensam que com o preço desses carros deveriam construir escolas? A sociedade deve reagir.
Infelizmente o povo procura os líderes e os líderes são intelectuais. É preciso que os intelectuais não se deixem intimidar. É preciso que os intelectuais assumam o seu papel de lutadores por uma causa. Os professores universitários, eu fico triste quando os vejo a fazer bajulação ao regime. Eles devem ser formadores de consciência, mas vejo professores universitários que são bajuladores…
Meus irmãos, tal como em Angola, eu digo: temos que combater o medo, temos de nos libertar desses ditadores que querem que nós vivamos sob o medo para que eles possam progredir. O nosso medo é a prosperidade deles. A nossa consciência de luta é o recuo deles. Então ganhemos consciência de luta. Temos que lutar pela nossa dignidade, pela dignidade do povo moçambicano, pela dignidade do povo angolano. É esta dignidade que fará com que os povos possam progredir.

Canal: Últimas palavras….

David Mendes: Para finalizar quero dizer que nada me calará, talvez só a morte me calará. E que fique bem claro, eu não me exilo, vou continuar a viver em Angola. Queira José Eduardo dos Santos ou não eu vou continuar a falar. Ou então use outros mecanismos: que me mande matar.

Peculato: o que é?

Peculato é o facto do funcionário público que, em razão do cargo, tem a posse de coisa móvel pertencente à administração pública ou sob a guarda desta (a qualquer título), e dela se apropria, ou a distrai do seu destino, em proveito próprio ou de outrem”.
O artigo 312 do Código Penal tipifica o peculato como:
Crime de apropriação por parte do funcionário público, de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou privado de que tenha a posse em razão do cargo, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio. Além de, não tendo a posse, mas valendo-se da facilidade que lhe proporciona o cargo, subtrai-o ou concorre para que seja subtraído para si ou para alheio.

Há três formas de peculato 
Peculato-apropriação, o funcionário público se apropria do dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou partícular de que tem o agente a posse em razão do cargo; 
Peculato-desvio, o funcionário público aplica ao objecto material destino diverso que lhe foi determinado em benefício próprio ou de outrem; 
Peculato-furto, o funcionário público não tem a posse do objeto material e o subtrai, ou concorre para que outro o subtraia, em proveito próprio ou alheio, por causa da facilidade proporcionada pela posse do cargo.
(Borges Nhamirre /Canalmoz / Canal de Moçambique)



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