A par de uma China
que se apresenta ao mundo como paradigma alternativo ao ‘Consenso de
Washington’, existe, em contrapartida, uma outra China a quem o planeta critica
o Estado autoritário que oprime os seus cidadãos, prende os dissidentes
políticos e exerce a censura. Esta é, por outro lado, a China do crescimento
económico espetacular que se funda contudo, de acordo com Jaffrelot (2008: 83),
“num desastre ambiental sem precedente: desertificação dos solos, inundações,
poluição, falta de água, chuvas ácidas, doenças pulmonares…”.Estes e outros
fatores,a seguir apresentados, dão-nos a conhecer a outra face de uma China que
é vista frequentemente como‘gigante’, contudo um gigante vulnerável.
O desmazelo ambiental
A questão
ambiental é uma das que mais preocupa os dirigentes chineses. Dado que os
combustíveis fósseis fornecem 94% da energia consumida na China, apesar do
grande potencial hidroelétrico de que o país dispõe, não surpreende que Pequim
se mostre apreensivo. As estimativas dão conta de quase 400 000 pessoas que
perdem a vida, cada ano, por causa dos efeitos da poluição. Por outro lado, é
de notar que, entre as dez cidades mais poluídas do mundo, sete localizam-se na
China.Não são as leis para combater a poluição que faltam no país, no entanto,
elas não são aplicadas convenientemente. Se a classe dirigente revela um
empenho ainda tímido face à ecologia, é, sobretudo, porque a importância que o
desenvolvimento económico tem para a China, não pode sofrer, aos olhos do
poder, da proteção do ambiente.
As várias ‘Chinas’
Além da questão
ambiental, uma outra fustiga particularmente o país, contribuindo, também ela,
para mitigar a tese da ‘ameaça’ chinesa. A questão das desigualdades entre
regiões é inquietante.
Jean-François
Dufour (1999: 57) prefere falar essencialmente de um país “dividido em ‘várias
Chinas’, caracterizando-se por problemáticas diferentes em termos de geografia
humana”. Deste modo, Dufour contrapõe a uma China costeira dinâmica, motor do
crescimento dos últimos vinte anos, uma outra China, interior, deixada para
trás, que sofre de um cúmulo de males socioeconómicos consideráveis. Face a
essas ‘duas Chinas’, é preciso considerar ainda uma terceira China, ‘exterior’
e colonizada, onde o princípio da unidade nacional não foi concretizado.
A tudo isto se
junta, como lembra B. Vermander (2004: 10), “as instabilidades, as tensões e
perigos crescentes, cujo mais significativo está ligado à estabilidade social:
falhas do sistema de saúde; a diferença (crescente) de rendimentos entre zonas
urbanas e rurais; as desigualdades enormes no que toca ao ensino; as
manifestações ligadas à corrupção, aos acidentes nas minas e indústrias, (…)”.
O Partido Comunista chinês: ‘obstáculo’ ao desenvolvimento
Se, outrora, o
Partido Comunista (PC) chinês foi um partido de mobilização, outros fatores
contribuem, de ora em diante, para fazer dele (aos olhos dos próprios chineses)
um obstáculo, mais do que uma ajuda, ao desenvolvimento
contínuo do seu país.
Se recuarmos um pouco
na história do PC chinês e naquela da China recente, constatamos que os dois
estão de tal modo ligados que, por vezes, se confundem numa única e mesma
história. Verificamos aí uma prova da força do Partido: o facto de ter traçado
um caminho para milhões e milhões de chineses que, por sua vez, reconhecem a
sua legitimidade e se deixam conduzir pelo que este acreditava ser a melhor
escolha para a China.
Contudo, se
outrora ele mobilizava os chineses em torno de um projeto político-económico
comum e ambicioso, hoje o Partido parece não mais corresponder à sua missão
histórica. Essa é, pelo menos, a convicção de Vermander (2004: 20). Com efeito,
o autor considera que uma vez asseguradas as bases do desenvolvimento
económico, a necessária pluralização da sociedade civil e a necessidade de uma
circulação rápida e fiável dos fluxos de informação, fazem do PC chinês um
travão mais do que uma locomotiva para o acesso às etapas seguintes do
desenvolvimento nacional.
A fim de contornar
as dificuldades que minam o futuro do Partido, algumas estratégias foram postas
em prática. Elas visam, sobretudo, ultrapassar as razões de descontentamento
interno, através de um trabalho ‘ideológico’, catequizando o espírito. Dito de
outro modo, é preciso concentrar os fatores de divergência, não em torno do
Partido, mas em ideais ‘nobres’, tais como a corrida ao espaço, Taiwan e os
Jogos Olímpicos. Nesse sentido, os últimos anos fizeram prova de um
nacionalismo e de um patriotismo exacerbados.
Medindo os vários componentes da ameaça
Todos estes
aspetos nos levam a concluir, tal como F. Houtart (2011), que a China não pode
ser considerada um ator ‘ameaçador’ neste novo século. O autor justifica a sua
posição, baseando-se essencialmente no argumento da destruição ecológica,
gerada pelo crescimento chinês e, em segundo lugar, na questão das
desigualdades sociais, ampliadas por este modelo de crescimento. Partilhando o
mesmo ponto de vista, um outro autor, Paul Servais (2011), não hesita em
concluir, a esse respeito, que o crescimento económico chinês pode representar
um problema mais para a própria China do que para a economia mundial.No plano
económico, Servais explica que não é de todo evidente, por outro lado, que a
China seja uma ameaça às economias ocidentais, porque se a sua performance global
é verdadeiramente notável, ela permanece contudo extremamente limitada.
Em termos
militares, Servais defende que no plano mundial, a China não é, provavelmente,
uma ‘ameaça’. O seu orçamento militar é incomparavelmente menos elevado que o
orçamento militar americano, e as suas forças armadas, ainda que
impressionantes quanto ao número de efetivos, são, no geral, extremamente
sub-equipadas. Masse a ‘ameaça’ não vem das forças armadas chinesas, isto não
impede que a China preveja que, a médio ou longo prazo, haja um conflito com os
Estados Unidos. A esse respeito, a China está consciente que um império que se
encontra em declínio económico e que permanece extremamente potente ao nível
militar, é uma fonte de conflito potencial para o futuro.
Em conclusão, a
‘ameaça chinesa’ é, de momento, reduzida. Isto não quer dizer, contudo, que os
chineses não lutem para reencontrar o caminho da ‘tentação imperial’, para
voltarem a ser a ‘grande nação’ que eram no passado. Essa amálgama de ‘destino
manifesto’, de ‘missão histórica’, de nacionalismo, de prestígio e de nostalgia
de um passado glorioso poderá,talvez um dia, fazer da China uma superpotência.
Mas essa possibilidade não deve ser interpretada como sendo um fenómeno
anormal. Ao contrário, ela inscreve-se numa dinâmica natural do ‘nascimento e
declínio das grandes potências’.
Bibliografia
DUFOUR,
Jean-François (1999).Géopolitique de la Chine. Bruxelles: Editions
Complexe, 143p.
HOUTART,
François, Entrevista pessoal concedida no âmbito da presente reflexão, Lovaina,
Centre Tricontinental, 3 de abril de 2011.
JAFFRELOT, Christophe (2008). L’Enjeu Mondial: Les
pays émergents. Paris: Presses de la
Fondation Nationale des Sciences Politiques, 309 p.
SERVAIS, Paul,
Entrevista pessoal concedida no âmbito da da presente reflexão, Lovaina,
Universidade Católica de Lovaina, 3 de abril de 2011.
VERMANDER, Benoît
(2004).“La Chine ou le temps retrouvé”, Ceras - revue Projet,
n°278, p. 1-176.
Paulo Duarte é doutorando em Relações Internacionais
no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade
Técnica de Lisboa – ISCSP-UTL, Portugal, e investigador no Instituto do Oriente
(duartebrardo@gmail.com).
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