[Ponto Prévio: De algum
tempo a esta parte, todos os anos por ocasião da passagem do 27 de Maio faço
questão de marcar a mais tétrica efeméride da nossa história do
pós-independência com uma reflexão sobre a data, cujo impacto devastador no
nosso tecido político e humano é sobejamente conhecido, sendo visíveis as suas
consequências até aos dias de hoje, a justificar plenamente este exercício
regular.
REGINALDO SILVA
Trata-se de um exercício
que, para todos nós, que fomos directamente tocados pelos acontecimentos,
assume contornos especiais, na homenagem que prestamos a milhares de
compatriotas nossos, onde se incluem amigos e familiares, que foram vítimas da
voragem repressiva/assassina que então se apoderou do país.
Uma voragem decidida ao
mais alto nível da hierarquia política que então nos governava e que foi
executada de forma implacável pelos dirigentes, oficiais e agentes da polícia
política da época, a tenebrosa DISA, por mais de dois anos em todo o país, onde
foram criados verdadeiros “gulags”, isto é, campos de concentração, para
absorverem milhares de prisioneiros em condições violadoras de todos os
direitos humanos, começando pelo direito a um julgamento justo.
Este ano estava sem saber
muito bem do que falar até que na passada quarta-feira tive um inesperado
reencontro com o passado que foi decisivo (estruturante) para a definição da
minha actual forma de estar na vida e muito particularmente do meu
relacionamento com a política.]
Voltei esta
quinta-feira a penetrar na cadeia de São Paulo, 35 anos depois de lá ter
entrado pela primeira vez, a 28 de Maio de 1977, como prisioneiro político, na
sequência da monumental e sangrenta caça às bruxas que se seguiu ao
acontecimentos de 27 de Maio de 1977. Sem acusação nem julgamento permaneci na
Prisão de São Paulo até ao dia 4 de Fevereiro de 1979.
O meu primeiro contacto
com a Prisão de São Paulo é, contudo, muito mais antigo.
Tudo começou quando tinha
por aí cinco ou seis anos de idade.
Foi nos idos de 60 que os
meus contactos com a prisão de São Paulo tiveram início onde várias vezes fui
com a minha mãe visitar o meu pai que era um "hóspede" regular da
PIDE/DGS.
Lembro-me bem dessas
visitas.
Um dos carcereiros do meu
pai, o Sr. Marques mais a sua esposa, acabaram por ser os padrinhos da minha
irmã mais nova, que nasceu em 1961, no ano em que o meu pai foi preso pela
primeira vez tendo lá permanecido até 1963, salvo erro. Depois voltou em 66
onde ficou por menos tempo. Pelo que julgo saber o meu pai nunca foi julgado,
mas quando saía aplicavam-lhe umas medidas de segurança que limitavam muito a
sua vida como funcionário público. Por exemplo não podia concorrer a funções
superiores no seu quadro da sua carreira, por isso ganhava muito mal.
A vida prega-nos com cada
partida.
De facto, nada na minha
agenda desta quinta-feira me faria adivinhar que eu poderia voltar hoje a
franquear os portões daquela instituição, transformada actualmente num moderno
e remodelado Hospital-Prisão.
Razões de ordem pessoal
que não têm nada a ver com a instituição mas com alguém que lá trabalha,
estiveram na origem desta inesperada visita relâmpago que durou cerca de 15
minutos.
O nosso "hotel"
está mudado, está mais bonito. Todo pintadinho de fresco.
Mantêm-se as casernas
antigas, mas foram acrescentados mais alguns edifícios funcionais.
O refeitório está no
mesmo sitio ao lado do "comboio", onde estavam localizadas algumas
das celas individuais, incluindo a famigerada cela 5 que era a solitária, a
cela de castigo, onde estive por duas vezes a cumprir sanção disciplinar.
Na primeira ida para 5,
lembro-me perfeitamente, foi por ter gritado depois de ter visto das grades da
cela "Siga de Cima" a minha mãe, que pensava que eu já estava morto.
Sair da 5 e voltar
para a caserna era um pouco como ganhar a liberdade sem deixar
a cadeia.
Era um verdadeiro
alívio....
A visita desta
quinta-feira causou em mim uma sensação difícil de descrever. Foi na prisão de
São Paulo que vivi os piores e mais angustiantes momentos da minha vida, pois
na altura ninguém sabia se algum dia sairia dali com vida.
Mas também foi no São
Paulo onde fiz as melhores e mais sólidas amizades que conservo até aos dias de
hoje.
Foi no São Paulo onde
aprendi a conhecer melhor os angolanos.
Os bons e os maus. Ainda
andam quase todos por aí...
Foi no São Paulo e depois
de toda aquela barbárie que fomos testemunhas, que decidi nunca mais voltar a
militar em nenhum partido, seja ele qual for.
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