Por Edson Teles
- de São Paulo
Dia 14 de agosto último, em
decisão surpreendente, sob vários aspectos, o Tribunal de Justiça de São Paulo,
por meio de sua 1ª Câmara, confirmou a sentença emitida pelo juiz Gustavo
Santini, de 2008, na qual havia declarado: “que entre eles [autores] e o réu
Carlos Alberto Brilhante Ustra existe relação jurídica de responsabilidade
civil, nascida da prática de ato ilícito, gerador de danos morais”. Em um dos
testemunhos registrados no processo, pode-se ler: “disse que foi pessoalmente
interrogado pelo réu, o qual o ameaçou, o espancou e lhe aplicou choques
elétricos”.
Portanto, após 40 anos dos crimes, confirma-se, por
meio de uma declaração civil condenatória, a relação jurídica do coronel Ustra
como comandante e autor das torturas sofridas pela família Teles nas
dependências do DOI-CODI (Departamento de Operações de Informações – Centro de
Operações de Defesa Interna), órgão submetido ao Comando do II Exército. Tendo
sido o principal oficial do órgão, entre os anos de 1970 e 1974, Ustra
coordenou a instituição já responsabilizada pelo Estado brasileiro (via
processos administrativos indenizatórios) como local de morte e desaparecimento
de dezenas de opositores à ditadura e centro de tortura de outras
centenas de pessoas.
No dia 28 de dezembro de 1972, quando acompanhavam
o dirigente do Partido Comunista do Brasil, Carlos Nicolau Danielli, Cesar
Teles e Amelinha Teles (meus pais) foram presos. Já nos carros nos quais eram
transportados para o DOI-CODI começou a série de sessões de tortura física
contra os três. Enquanto os três passaram a noite nas salas de tortura, eu,
minha irmã e minha tia viríamos a ser presos na manhã seguinte, em nossa
residência. Tomo a liberdade de citar meu próprio depoimento coletado por um
trabalho cuidadoso do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS:
- Meus pais, Maria Amélia e Cesar, estiveram
detidos no DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, juntamente com a Criméia,
minha tia, e Carlos Nicolau Danielli, dirigente do PCdoB. Criméia fora
guerrilheira no Araguaia e os meus pais, no Rio de Janeiro e depois em São
Paulo, participavam da organização da estrutura do partido. Eu e minha irmã, Janaína,
tínhamos à época 4 e, ela, 5 anos.
- Em dezembro de 1972, alguns meses após o início
da Guerrilha do Araguaia, os militares estavam procurando ostensivamente as
pessoas que faziam parte da rede de apoio aos guerrilheiros. No dia 28, meus
pais foram levar o Danielli ao ponto de encontro com outro dirigente do
partido, na Vila Mariana, em São Paulo, porém o encontro já havia sido entregue
para a polícia. Os três foram presos e já começaram a ser espancados no carro
que os transportou. Foram levados para o DOI-CODI do II Exército, onde hoje
funciona a 36ª Delegacia de Polícia. O local de repressão era comandado pelo
major Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ele os recebeu com agressão física já no
pátio do quartel.
- Nós, eu e a minha irmã, ficamos em casa com minha
tia. Não sabíamos o nome do meu pai, da minha mãe e da minha tia. Eles eram
“pai”, “mãe”, “tia”, este nome genérico, por motivo de segurança. No dia
seguinte à prisão, eu estava na sala assistindo Vila Sésamo e um casal tocou a
campainha. Eram dois policiais à paisana. Naquele momento houve um bate-boca da
minha tia com os policiais. Aparentemente eles tinham medo de nós. Apontaram
metralhadoras para mim e para a minha irmã, nos levaram para um camburão,
separado da Criméia. Colocaram-nos na parte de trás do camburão, presos, de
modo coerente à condição de “filhos de terroristas”, como eles nos chamavam.
- Fomos levados para o DOI-CODI, não sei se
imediatamente, mas em algum momento fomos levados para lá. A cena de que me
recordo é que estávamos no interior do prédio e ouvi a voz da minha mãe me
chamando. Ao olhar para trás, após ter identificado e me alegrado pelo encontro
com aquela voz tão familiar, não reconheci o seu rosto. Naquele momento, minha
mãe já se encontrava cheia de hematomas esverdeados e roxos. Logo depois nós
fomos levados para dentro da sala de tortura. Meu pai estava numa cadeira
(“cadeira do dragão”), na qual a pessoa é amarrada e envolvida com fios
elétricos desencapados por todo o corpo.
- O Danielli, ao final do terceiro dia, foi
assassinado naquelas dependências. Meus pais foram testemunhas das violências
que resultariam em sua morte. Neste mesmo dia, lhes foi mostrado a manchete de
um jornal de São Paulo, com a notícia da morte, em tiroteio, de um terrorista.
Na matéria vinha estampada a foto de Carlos Nicolau Danielli, que acabara de
ser assassinado em tortura. Os militares disseram algo como: ‘olha, nós damos a
versão que queremos para estes fatos. Vocês também vão, logo mais, aparecer no
jornal.
A sentença de 2008, agora confirmada em segunda
instância, realiza, por um lado, o reconhecimento público de que a família foi
presa e torturada pelo oficial do Exército brasileiro, coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra. Feito de extrema importância para a família e, especialmente,
para a luta constante por justiça no país. Por outro lado, estes recentes
acontecimentos históricos, expressos pelo ordenamento jurídico, mostram os
graves limites nos quais se encontra bloqueada a democracia. Isto exige um
olhar crítico e atento, com o objetivo de denunciar a ausência de
esclarecimento e reconhecimento do modo destrutivo e violento com que a ditadura
militar se inscreveu na cultura política e social do país.
Refiro-me ao lento processo de inclusão dos crimes
da ditadura na pauta nacional. O processo contra o coronel Ustra teve início em
2005. Mais de 30 anos após os fatos e cerca de três anos antes do governo Lula
adotar o discurso, pela primeira vez desde a entrada de um presidente civil, da
justiça de transição. Era a primeira vez que um agente da repressão seria
individualmente processado.
Desde os anos 90 em busca de um ato de justiça, a
família tinha dificuldades em conseguir advogados que aceitassem processar na
vara penal um torturador. Seja pelo desconforto nacional que isto poderia gerar,
seja pela visão jurídica de que a Lei de Anistia impedia tal procedimento.
Estudando o caso argentino, vislumbrou-se uma saída. Durante os anos 90, diante
das leis de “obediência devida” e do “ponto final”, criadas pelo governo Menen
para impedir os processos penais, os familiares de desaparecidos iniciaram os
“juízos pela verdade”. Eram processos civis nos quais se solicitava a
declaração de relação jurídica entre a vítima e o criminoso. Foram processos
importantes para a penalização dos militares argentinos nos anos 2000.
Em acordo com o advogado Fábio Konder Comparato, a
família elaborou e deu entrada no pedido de reconhecimento da condição do
coronel como torturador. Decidiu-se não pedir qualquer indenização, deixando
claro o objetivo de reconstituição da dignidade ofendida na sala de tortura da
ditadura e na ausência de punição da democracia. No atual processo, eu e minha
irmã não fomos considerados vítimas do Ustra, por ausência ou insuficiência de
provas, ainda que o próprio coronel tenha assumido em seu livro que nos levou
ao DOI-CODI. No entanto, o fez com o intuito “humanitário” de conceder uma
“visita” aos presos. Em nenhuma das audiências do atual nós, autores, pudemos
narrar os fatos, o que foi substituído pelo relato escrito.
Este modo limitado e lento de lidar com os crimes
da ditadura, ainda que diminuto, ajuda a acelerar o trato do tema pelo Estado.
Junto a esta iniciativa, soma-se a de outro grupo de familiares, os parentes de
mortos e desaparecidos da Guerrilha do Araguaia. Neste outro processo, os
familiares tiveram ganho definitivo de causa em 2006. Logo após, por
descumprimento e vagarosidade na Justiça, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos da OEA aceitou o pedido de julgamento do Estado brasileiro.
Reclamava-se a localização dos desaparecidos, a circunstância das mortes e a
punição dos responsáveis.
Foi neste contexto que o Estado adotou o discurso
da justiça de transição, buscando um modo de lidar com um assunto que entrava
cada vez mais em destaque nos contextos nacional e internacional. Discurso este
que pode ser articulado para exigir a efetivação dos direitos das vítimas e
pela não repetição do regime autoritário ou de rompimento com o seu legado.
Contudo, o discurso da justiça de transição, na
medida em que indica uma negociação para os atos de justiça, pode também servir
a uma estratégia retórica para legitimar processos parciais de reconhecimento
do direito à verdade e à memória e encobrir a impunidade acordada na transição.
O Brasil parece fazer uso tanto do discurso manipulador, quanto do discurso
emancipatório.
É fato que até hoje o Estado não cumpriu a sentença
da Justiça Federal e a da Corte da OEA sobre o caso Araguaia. A Lei de Anistia
não foi reinterpretada, como designava a sentença, os corpos não foram
localizados e as mortes e os seus responsáveis não foram esclarecidos. O
cumprimento é de responsabilidade prioritária do Executivo, pelas
responsabilidades constitucionais que tem, bem como pelo seu papel político na
reconfiguração das leis de impunidade, a exemplo do ocorrido no Uruguai, Chile
e Argentina. Nestes países, sem a ação determinada de seus governos, teria sido
muito mais difícil iniciar os julgamentos.
É diante deste contexto brevemente colocado que a
cobrança por justiça diante dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade se
faz legítima e apropriada. É claro que esta Comissão não é uma instância do
ordenamento jurídico e nem mesmo teve em sua lei a autorização para obrigar
alguém a depor ou indiciar um criminoso. Também não lhe foi concedida a prerrogativa
de envio do relatório final ao STF e ao Ministério Público, como ocorreu com
outras comissões, com o fito de iniciar os devidos processos criminais.
Porém, os movimentos de direitos humanos e de
familiares, para não dizer o conjunto da sociedade brasileira, têm o direito e
a razão de exigir da Comissão o comprometimento de seus trabalhos com atos de
justiça. A Comissão é instituição do Estado e, por força do modo como foi
criada e de sua lei, encontra-se vinculada a uma lógica de governo que limita sua
autonomia. A cobrança dos movimentos por justiça inscreve-se na luta política
mais ampla por uma democracia efetiva na qual a impunidade seja condenada, não
somente por estratégias retóricas, mas por atos concretos de transformação da
condição atual.
Edson Teles é professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Imagem: O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra foi
condenado por tortura durante a ditadura militar
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