sábado, 11 de fevereiro de 2012

CARLOTA





"Um dia mais com Vida": um canto à ética e dignidade dos repórteres
O JORNALISMO MÁGICO DE RYSZARD KASPUSCINSK
A Lendária guerrilheira do MPLA "Carlota" fotografada por Kapuscinski numa tarde de Outubro de 1975 na ponte sobre o rio Balombo (província de Benguela-Angola). Uma hora depois "Carlota não existe mais". Tomba em combate a comandar o seu destacamento durante o ataque à vila. A sua firmeza e o seu sorriso luminoso continuaram a inspirar os que conquistaram a Independência de Angola e a defenderam com o seu sangue Heróico e Generoso.

Por: JAIME AZULAY
http://jaimeazulay.blogspot.com/

(Dedicado à passagem do Dia Internacional do Jornalista, 8 de Setembro)
Quando em Janeiro de 2007, o jornalista polaco Ryszard Kapuściński faleceu por doença em Varsóvia, aos 74 anos de idade, foram-lhe dedicados vários epitáfios, entre os quais: “Mestre do jornalismo moderno”, “O maior repórter do mundo” e “Heródoto dos nossos tempos”. Para Gabriel Garcia Marques o finado foi simplesmente “ o melhor correspondente em zonas de risco em todo o Século XX”. Homenagem merecida para o escritor e repórter de guerra prestigiado por milhões de leitores no mundo inteiro, com 19 obras publicadas em mais de 30 línguas.
Do seu legado destaca-se “Un día más con vida” que me chegou as mãos na edição em castelhano (Editora Anagrama, Barcelona,2010). Trata-se de um livro de crónicas de guerra que Ryszard Kapuściński escreveu baseado na sua estada em Angola durante os turbulentos meses que antecederam a proclamação da Independência nacional, a 11 de Novembro de 1975. Ele próprio a considerou como a sua melhor obra. “Un día más com vida” ganhou uma adaptação cinematográfica homónima que está a ser produzida pela "Kanaki Films", de Espanha, sob a batuta do director Raul de la Fuente. A película está prevista para estrear em 2012.
Encontrei-me com Raul em Luanda no mês de Junho de 2011, a pedido do jornalista Artur Queiroz, o qual solicitava os meus modestos préstimos na reconstituição de uma parte da incrível odisseia de Ryszard Kapuściński em Angola, em 1975. Queiroz e Kapuściński conheceram-se na atmosfera da guerra que se acercava de Luanda trazida por exércitos estrangeiros que entraram no território com a missão de impedir a proclamação da independência pelo MPLA. Queiroz era um dos poucos jornalistas que tinha ficado no então “Diário de Luanda” e escrevia sozinho a metade do jornal. Ambos os repórteres cimentaram uma relação profissional e de amizade que é retratada no livro.
Folheto do filme "Un día más de vida" que está a ser produzido pela Kanaki Films do país Basco (Espanha) sob a batuta do director Raúl de la Fuente. O carisma da guerrilheira "Carlota" em mais uma foto captada pelo grande repórter Kapuscinski. Desfilam no filme outros personagens da história angolana como os comandantes Ndozi, Monty, Farrusco, Jujú e o presidente Agostinho Neto e outros anónimos entrevistados pelo jornalista polaco durante os 3 meses que esteve em Angola antes do 11 de Novembro de 75
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Acompanhado da simpática assistente Amaia Ramirez da Kanaki Films, e na qualidade de director, Raul de la Fuente explicou-me os seus propósitos: adaptar em cinema a aventura angolana do famoso repórter polaco, com um formato inovador, recorrendo à alta tecnologia digital de animação, à qual agregaria a parte documental propriamente dita. Numa palavra, trinta e cinco anos depois, em 2010, baseado nos relatos do mestre da reportagem, personagens animados tomam vida na tela e reconstituem o horror da guerra e de como conseguiram sobreviver ao caos e à loucura vivida nas trincheiras. Pretende-se que, ao ver o filme, o espectador viaje desde os dias dramáticos de 1975 até chegar à Angola actual. Concordei que era uma história bélica fascinante.”- Mas em que posso eu ajudar, Raul? Não figuro entre os mortais bafejados pela honra de conhecer Kapuściński , nem tampouco tive a sorte de vê-lo quando andou por aqui”, disse-lhe.
Raul pronunciou o nome de Carlota, entendi tudo porque Queiroz já me tinha falado do assunto por telefone. Cabia-me proporcionar à equipa de cinema o rasto da lendária guerrilheira do MPLA, tombada em combate na Vila do Balombo numa tarde de Outubro de 1975, cerca de uma hora após se ter despedido de Kapuściński e de uma equipa de TV portuguesa que a própria Carlota tinha escoltado desde Benguela por ordem do comandante Monty, da então Frente Centro.
Balombo era uma localidade sitiada após ter sido tomada naquela mesma manhã por um destacamento de uma centena de combatentes do MPLA, entre os quais Kapuściński encontraria algumas jovens, que tinham deixado por instantes as armas para cuidarem da higiene com um banho no rio. Viu Carlota repreendê-las que não deveriam perder muito tempo com banhos porque o inimigo atacaria a qualquer momento.
Feito o trabalho dos repórteres, Carlota tomaria então a inexplicável decisão de não regressar com eles à Benguela, contrariando as ordens de Monty. O comando dispensara duas viaturas para levar os jornalistas à frente do Balombo, sobretudo Kapuściński que insistiu em reportar do local dos acontecimentos, como sempre o fazia. Carlota deveria trazê-los imediatamente de volta quando terminassem o seu trabalho, mas isso não aconteceria. No último instante, quando os outros já se encontravam no interior das viaturas, Carlota abandonou o seu lugar no banco da frente do Citroen. Segurando a Kalashnikov, bateu decididamente a porta e ordenou ao estupefacto motorista que partissem de imediato. Kapuściński viu o vulto trajando um uniforme de paraquedista e botas de couro de cano alto, os cabelos eriçados num penteado afro, desaparecer irremediavelmente na distância, à medida que os carros avançavam. Poucas horas depois, enquanto aguardavam o jantar num restaurante em Benguela, chegaria a fatídica notícia: mal abandonaram o Balombo o inimigo iniciou o ataque e tomou a vila de assalto. Carlota caíra durante a luta.
Resulta impressionante a imagem que o repórter guardaria da lendária guerrilheira, imortalizada numa foto tirada quando Carlota se encontrava encostada ao parapeito da ponte sobre o rio Balombo na entrada da vila ameaçada. Ele escreveria mais tarde em “Un dia más con vida” que tudo aconteceu como se Carlota tivesse sido impelida por um misterioso mandato, como acontece num acidente marcado pelo destino: “Carlota no existe, ya no esta entre los vivos. Quién podía imaginar que la veíamos en su última hora de vida?”. No fundo Kapuściński não acreditava em fatalidades.” Não existe vida na guerra”.
Porque Riscarzard Kapuscinski o merecia, e pelo simples facto de Carlota ter sido recordada, foram razões mais do que suficientes para que eu desse um modesto contributo na concretização do projecto cinematográfico “Un día más con vida” do jovem director catalão Raul de la Fuente, de quem recebi a seguinte mensagem em “portunõl”:.
“Querido Jaime,
Agora mesmo chegamos ao Pais Basco, felices e mesmo agotados da aventura em Angola, que já amamos muito.
No nosso ultimo dia en Luanda foi impossivel fazer as despedidas que tinhamos planejadas, já que ficamos sem motorista.
Ainda bem, já que nâo temos intençao de nos-despedir de ninguem, só de agradecer tuda a inmensa e valiosa ajuda recebida, é continuar sempre em contacto, já que havemos de voltar é ainda fica muito caminho até finalizar este filme que é nosso major sonho.
Continuamos em contacto, vou mantener-te informado dos avançes é de nosso planes. Si planejaras viagem ao Pais Basco, tens uma casa amiga.
Um abraço,
Amaia é Raul”

Quem foi Ryszard Kapuściński?
1975. O jornalista Riszard Kapuscinski posa com combatentes das FAPLA participantes na guerra angolana poucos dias antes da proclamação da Independência Nacional. "Eu não escrevo ficção. Os romancistas estão em casa escrevendo em situação confortável. As pessoas não entendem que um trabalho de reportagem exige do seu autor um enorme esforço e correr riscos". (Foto do arquivo de R. Kapuscinski)
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Riszard nasceu em Pinsk, uma localidade que outrora integrava a Bielorrúsia e hoje pertence à Polónia, no dia 4 de Março de 1942 . Licenciou-se em História, foi jornalista e escritor. Começou a sua carreira jornalística aos 17 anos. De 1958 a 1981 trabalhou na Agência de Notícias Polaca PAP ( Polska Agência Prasowa) como correspondente internacional. Realizou trabalhos em 50 países, fez a reportagens de guerras, golpes de estado e revoluções em África, na Ásia, na Europa e Américas. Fez amizade com Che Guevara na Bolívia, conheceu Salvador Allende no Chile e Patrice Lumumba no Congo. Ao longo da sua vida presenciou 27 Revoluções e esteve em 12 frentes de guerra. Por quatro vezes esteve a pontos de ser executado.
Ficou conhecido por reportagens em África, onde chegou pela primeira vez em 1957 e começou a testemunhar, em primeira-mão, o fim dos Impérios coloniais e o despontar de intrincadas rivalidades tribais e raciais entre os africanos.
A partir do início da década de 1960, Kapuściński publicou livros de elevado valor literário, habilmente caracterizados por uma sofisticada narrativa técnica, retratos psicológicos das personagens, abundância de metáforas e outras figuras de estilo e imagens raras que servem como meios para interpretar a percepção do mundo. O livro mais conhecido de Kapuściński, " O Imperador", trata do declínio do regime Etíope de Hailé Selassié. Escreveu depois o "Xá dos Xás”, sobre a queda do último Xá da Pérsia Mohammad Reza Pahlevi e " Imperium”, sobre os últimos dias da União Soviética.
Na década de 80 passou a colaborar com jornais e revistas internacionais, como o The New York Times e o conhecido jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung.
Kapuściński cultivava um fascínio tanto pelo exotismo das terras e das pessoas, como pelos livros: ele aproximava-se dos países estrangeiros, inicialmente, pela literatura, passando meses a ler antes de cada viagem.
“Um día mais com vida”, é considerado pela crítica como o mais literário e pessoal dos seus livros tendo ultrapassado o simples relato de um repórter. É referido como um diário íntimo, escrito por um ser humano no limite das suas forças, na angústia da solidão e a consciência de estar indefeso perante a espada da morte que pende sobre a sua cabeça. A mesma espada que paira sobre as cabeças dos soldados e civis que desfilam como protagonistas ao longo das 400 páginas do livro
Ao chegar a um local ele conseguia rapidamente cativar interlocutores, graças a um dom especial para ouvir as pessoas que ia conhecendo, por vezes em situações de extrema complexidade. Tinha também uma habilidade extraordinária para captar o sentido dos cenários que encontrava quaisquer que fossem. Depois transformava-os em “metáforas de transformação histórica”, tornando as aventuras pessoais numa fantástica síntese social e filosófica do mundo e dos povos.
Foi galardoado com vários prémios. Em 1999 foi eleito na Polónia como o melhor jornalista do Século XX. Recebeu o Prémio Príncipe das Astúrias e em 2005 foi doutorado com o título “honoris causa” pela universidade catalã Ramón Llull.
Embora tenha sido algumas vezes mencionado para receber o Prémio Nobel da Literatura mas não chegou a ser galardoado pela Academia Sueca. Em 2006, numa entrevista à Agência Reuters, disse que escreveu para “pessoas de qualquer lugar ainda suficientemente jovens para estarem curiosas sobre o mundo”
Passou os seus últimos anos a viajar, participando em conferências e reflectindo sobre o processo de globalização, sobretudo as suas consequências para a civilização.
Kapuściński considerou ser erro escrever sobre alguém com quem não nos comparamos pelo menos uma vez na vida. Desenvolveu em “ Los cínicos no serven para este oficio”, (da edição Catalã da Compactos, Barcelona, 2005), um livro conversado sobre o trabalho do jornalista, sobre as suas dificuldades e suas regras, sobre a responsabilidade dos intelectuais que hoje em dia, se dedicam à informação.
Como uma premonição face aos eventos que preenchem a actualidade dos “média” no mundo, o grande repórter Ryszard Kapuściński abordou a posição dos jornalistas na descrição da realidade nos cenários que ocorrem em épocas de grandes mudanças políticas e sociais e as consequências das revoluções tecnológicas no âmbito da comunicação social, sobretudo com a internet.
As suas inquietações são pertinentes e incrivelmente actuais, sobretudo para nós, africanos: “Como descrever a pobreza, a fome e as guerras? São imprescindíveis motivações éticas para se ser um bom jornalista? Que relação existe entre a realidade e a narração? Qual a postura do jornalista para mover-se entre a investigação da verdade e os condicionalismos do poder? Tal como escreveu Isabel G. Melenchón na sua coluna no jornal “La Vanguardia”, a leitura de qualquer dos seus textos é uma lição e são aconselhados aos jovens estudantes das faculdades de comunicação social.
A propósito do livro sobre Angola “Um dia Mais de Vida” perguntaram a Kapuściński se, no interesse da imparcialidade, por que razão ele não tinha igualmente explorado as motivações dos outros intervenientes no conflito angolano. Ali ele respondeu simplesmente com o grande dilema dos repórteres de guerra: "Ninguém me deu a oportunidade de fazê-lo". (relatado em Aartur Domoslawski, Kapuściński, a não-ficção)
Até hoje, a obra de Kapuściński desperta paixões díspares em vários quadrantes do planeta. O escritor britânico de origem nigeriana Adewale M. Pereira, enquanto por um lado elogiou Kapuściński por seu toque humano e eloquente, por outro afirmou reconhecer na sua obra uma propensão para generalizações superficiais sobre África, o que contribui “ inutilmente para atrapalhar a imagem dos problemas reais do continente, em vez de jogar luz sobre eles”.
Outros críticos usaram a crueldade para questionar elementos específicos da obra do mestre polaco, acusando-o de romper os padrões jornalísticos e de ter colaborado com os serviços secretos da então Polónia comunista. Andrew Rice destacou na edição de 1 de Outubro do “Nation” que, no fundo, todo o jornalismo é uma espécie de espionagem, porque as agências de inteligência em todos os lugares do mundo procuram recrutar correspondentes estrangeiros.
Por seu lado, num artigo eivado de maldade publicado no “State Magazine”o escritor Jack Shafer lamentou a crença geral que Riszard Kapuściński era um génio, rotulando-o de “fabulista” que não cumpria a regra básica do jornalismo. Shafer foi de imediato rebatido por Meghan O´Rourke quando este afirmou que Kapuściński inventou pequenos detalhes para revelar uma verdade maior. Estavam em causa alguns exageros e meias-verdades do repórter polaco, sobretudo na afirmação que lhe é atribuída de ter encontrado Che Guevara num momento em que o Che já estava morto.
Jean Lacouture, escritor francês que iniciou a carreira literária no jornalismo observou que o jornalista tem direito `a sua própria interpretação dos factos, mas nunca a sua fabricação definitivas. Engrossando a legião anti-Kapuściński , Lacouture sentenciaria diplomaticamente que “Ainda assim, uma mentira pode ser uma obra-prima literária” em alusão a alguma imprecisão factual e distorções que alegadamente povoam as suas reportagens, mas culmina dizendo que apesar do problema da credibilidade, Riscard Kapuscinski continua a marcar o seu território como um escritor.
Serenamente e na maturidade da vida, o mestre respondeu um dia aos seus detractores: “É possível que tenha escrito alguma mentira, mas não porque tivesse a intenção de ser mentiroso, mas porque a nossa memória é imperfeita, algumas recordações são incompletas ou as nossas emoções são confusas” (Auto-Retrato de um Repórter-2003). “Reportagens-livros são muitas vezes tratados como romances”, lamentou. As pessoas não entendem que um trabalho de reportagem exige do seu autor um enorme esforço, sacrifício e tomada de inúmeros riscos”.
Pergunta: Dizem que você, como repórter, atesta a veracidade dos textos com a sua própria pessoa. Nas suas reportagens acontece misturar os fatos ou deliberadamente alterá-los?
Kapuściński: Eu não produzo ficção. Se eu pretendesse escrever ficção eu seria capaz de fazê-lo e evitaria as atribulações e os esforços de um repórter no terreno. (...) Eu não posso inventar nada sozinho. Eu tenho que ir para o campo.
Passam os anos. O certo é que o “ Jornalismo Mágico” de Riszard Kapuściński permanece como paradigma do bom jornalismo, um canto à ética e à dignidade dos repórteres em todos os lugares do mundo. De facto, “Os cínicos não servem para esta profissão”.


Imagem: de 1975 na ponte sobre o rio Balombo (província de Benguela-Angola).
jaimeazulay.blogspot.com

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