quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Este regime absolutista convida ao golpe


Grande entrevista com o professor António Francisco  

A “Tragédia dos Comuns” na voz de um zambeziano

“Em Maputo, a voz popular diz que a Assembleia da República é a “escolinha do barulho”. Em Quelimane, fiquei com a sensação que as universidades são verdadeiras escolinhas do silêncio, pois o debate académico e estudantil é inexistente. Isto é pena.”

No nosso caso, podemos pensar que um dia seremos surpreendidos por uma insubordinação por via das Forças Armadas? – “E porque não? Um regime político tão centralizado, centralizador e dirigista; este presidencialismo absolutista, a longo prazo convida a golpes ou mudanças radicais, como foi a independência. Para se evitar tais mudanças precisamos de mudar o sistema político, principalmente o sistema de Governo, sistema eleitoral, criar um regime de efectiva independência de poderes.”
“Nós hoje só fazemos eleições para garantir a ajuda dos doadores e para reconhecimento de Moçambique como uma caricatura de democracia representativa.”

“A democracia funciona de forma inversamente proporcional à evolução do preço internacional do petróleo. Quanto mais cresce o preço do petróleo, mais reduz a democracia.”

“Se aqui o partido Frelimo conseguir dispensar os doadores, não só do Orçamento do Estado mas do financiamento aos principais sectores sociais, mais arrogante ficará. Por enquanto ainda têm que agir com calma, mas também não precisam de muita, pois os doadores ajudam no fingimento da alegada democratização e à descentralização. Acaba-se por ficar na intolerância, e na subjugação da cidadania a um partido.”

“Num ambiente em que apenas uma elite com poder político pode aspirar a participar no banquete do ambiente de negócios, eventualmente surgirão processos de descontentamento e insubordinação.”
Maputo (Canalmoz) – O professor António Francisco é um dos cidadãos moçambicanos que nasceu (1958) no centro-norte do País e acabou por se radicar em Maputo. Abandonou a sua terra, Quelimane, por uma série de razões. Nos últimos 10 anos não visitou a sua cidade-berço. Esteve lá há dias. Isso serviu de mote para esta entrevista que acedeu conceder ao Canal de Moçambique/Canalmoz.
António Alberto da Silva Francisco é Director de Investigação do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), Professor Associado na Faculdade de Economia da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Doutorado e Mestre em Demografia pela Australian National University (ANU) e Licenciado em Economia pela UEM (Universidade Eduardo Mondlane).
Leia na íntegra a entrevista, em jeito de pergunta-resposta:
Canal de Moçambique/Canalmoz (Canal): Nos meses passados o Professor António Francisco tem chamado à atenção para um assunto antigo mas poucos investigadores se interessam por ele, no caso da sociedade moçambicana. Fê-lo em relação à Cidade de Maputo; depois em Quelimane, em Junho passado; e ainda em Nampula. Um tema que diz afectar todo o País, com um nome sonante, mas poucos parecem conhecer o seu real significado. Ou seja, chama-lhe “Tragédia dos comuns”. O que entende por “tragédia dos comuns” e qual o seu significado em Moçambique?
António Francisco (AF) – Tragédia dos comuns é, sem dúvida, um conceito controverso, como aliás qualquer conceito que lida e mexe com os comportamentos, relações sociais, preconceitos e hábitos individuais. De forma simples, tragédia dos comuns é uma espécie de armadilha social, cultural e sobretudo económica, em que as pessoas extraem o maior benefício possível de um bem comum, sem se importarem com quanto contribuem para a sua produção e conservação. Uma armadilha social decorrente do conflito entre os interesses individuais concentrados no uso de recursos finitos considerados como bens comuns, bens públicos de todos em geral e de ninguém em particular.
Numa sociedade onde as pessoas são incentivadas a usar os recursos de forma livre e desregulada acabam por utilizar tais recursos de forma abusiva e exagerada. Um exemplo comum e conhecido do tempo em que os imóveis de rendimento foram nacionalizados e proibidos, em que tínhamos a APIE (Administração do Parque Imobiliário do Estado), os serviços de elevadores, de água e lâmpadas nos espaços comuns foram completamente degradados. Quem se importava com as torneiras abertas? Quanto tempo durava uma lâmpada de entrada; o que se passou com os elevadores? Luzes sempre acesas. Ninguém queria saber. Por que economizar, se o Estado se assumiu como único dono e responsável pelo bem comum? Por que ser poupado e ter cuidado com as coisas se o vizinho também não se importava em usar as coisas sem qualquer controle?

Canal: Mas isso acontece só nas cidades ou afecta todo o País? Por que destacou recentemente a Cidade de Maputo, quando surgiu a controvérsia entre a edilidade do Município e os informais da Cidade de Maputo, no início do corrente ano? Mais recentemente foi a Quelimane e fez uma palestra muito provocativa: “Como libertar Quelimane da tragédia dos comuns?” Isto é um problema principalmente urbano, ou é um problema que afecta também o meio rural, por exemplo, os recursos naturais como se tem falado tanto?

AF – Vamos clarificar bem este assunto. O conteúdo da tragédia dos comuns não se define em função da classificação urbano–rural. Eu levantei e escrevi sobre o assunto, em Fevereiro passado, por causa do conflito entre a edilidade e os informais na Cidade de Maputo, por o caso me ter despertado a atenção para o fenómeno. Primeiro que tudo, a tragédia dos comuns é uma relação social, uma armadilha social criada por instituições ou regras de jogo na sociedade, em que as pessoas são incentivadas a tirarem o maior benefício do recurso com o menor custo possível.
O termo é muito antigo. Remonta ao tempo da Grécia Antiga, a Aristóteles; mas foi o biólogo Garret Hardin que popularizou a ideia de “tragédia dos comuns” num pequeno mas seminal artigo publicado em 1968 na revista científica Science. Tem sido dos artigos mais citados e usado na investigação científica, quer a favor quer contra a ideia. Hardin chamou a atenção, no referido artigo, que existem certos problemas na sociedade que não podem ser resolvidos por via de meios técnicos, mas mudando as relações sociais, os valores humanos, as ideias de moralidade e as percepções de responsabilidade pessoal. Exemplificando um tipo de problema sem solução meramente técnica, Hardin destacou a relação entre o crescimento da população humana e a capacidade de utilização dos recursos, num planeta finito.

Canal: O que achou de Quelimane, após ter ficado mais de dez anos sem lá voltar?

AF – Quelimane retrocedeu dramaticamente, retrocedeu proporcionalmente ao retrocesso da economia zambeziana. É uma cidade moribunda que se recusa a desfalecer e morrer. Um bom retrato de Quelimane pode ser lido no livro intitulado, “A Cidade Subterrânea”, do Élio Mudender. Ele chamou-lhe romance, mas para mim é mais um documentário da tragédia quelimanense. Enquanto o autor descreve a cidade mergulhada num pântano de miséria e pobreza, corrupção, inveja, perseguições e vinganças, eu preocupo-me em entender a malha da tal armadilha social.

Canal: Sendo professor universitário há cerca de trinta anos, o que achou da comunidade universitária, sabendo que Quelimane, em poucos anos ficou com cinco ou seis universidades?

AF – Pois é. Cinco universidades e não foi possível encontrar uma única aberta e disponível para acolher um dos debates que foram realizados no Salão Nobre do Município de Quelimane. Pelo que parece, tinham interrompido as aulas para a realização de testes e exames. É um sistema tipo escola secundária. Mas mais curioso e estranho foi não existir um grupo, ou associação estudantil, empenhados em promover debates de interesse actual. Quem anda a fazê-lo é o Presidente do Município que tem cultura e sensibilidade académica.
Ainda houve um professor que da Universidade Politécnica (????) enviou uma ou duas turmas para a segunda palestra que fiz. Nessa altura partilhei com eles a sensação que tive. Em Maputo, a voz popular diz que a Assembleia da República é a “escolinha do barulho”. Em Quelimane, fiquei com a sensação que as universidades são verdadeiras escolinhas do silêncio, pois o debate académico e estudantil é inexistente. Isto é pena. Quando eu andava na escola secundária, em 1973 e 1974, ainda antes da queda do regime de Caetano em Portugal, a 25 de Abril; um núcleo de estudantes secundários, do liceu e da escola técnica, tinham contacto com estudantes universitários de Lourenço Marques e trocavam livros entre si. Foi assim que na altura li o meu primeiro livro proibido: “A Origem da Família, da Propriedade e do Estado”, de Friedrich Engels. E agora, quando não existe censura literária, temos o problema dos estudantes e jovens lerem muito pouco os clássicos da literatura e da política.
De qualquer maneira, do lado positivo, é interessante hoje irmos a Quelimane e termos um Presidente do Município a dinamizar o debate e reflexão pública. É o que está a fazer o Presidente Municipal Manuel de Araújo...  No dia 21 de Agosto Quelimane vai comemorar 70 anos como cidade. Coincidentemente, no dia que fiz a primeira palestra, faltavam 70 dias para o dia do aniversário. Manuel de Araújo anunciou publicamente, nesse dia, que aquela palestra era a primeira de uma série de outras palestras sob o lema “Repensar Quelimane, Repensar a Zambézia”. Foi nessa altura que apresentei o tema: “Como livrar Quelimane da Tragédia dos Comuns”.
Depois fiz uma outra sobre as oportunidades e constrangimentos da economia formal na Zambézia. Entretanto, Manuel de Araújo quer continuar com os debates; ele tem estado a convidar zambezianos, e não só; também outras pessoas que estejam interessadas em apoiar o processo de mudança que está a acontecer em Quelimane…

Canal: Em Quelimane ou no País?

AF - Sim, em Quelimane. Aquela cidade está a viver uma experiência única, na sua história. Como é sabido, a partir de 7 de Dezembro último surgiu uma mudança de liderança política nunca antes observada em Quelimane. Apesar de ser uma das únicas, ou a única autarquia na Província da Zambézia com uma alternância de liderança política, nas recentes eleições municipais, foi a primeira vez que surgiu uma mudança realmente partidária. Quelimane começou a redefinir-se e a repensar o seu lugar e papel como parte de uma das principais províncias moçambicanas, em termos populacionais e não só.

Canal: A Beira também deveria fazer isso?

AF – Sim, a Beira devia fazer. Só que na Beira a liderança política alternativa ao partido no poder no resto do País, a Frelimo, não mostra substância e vigor intelectual. O benefício e diferença em Quelimane é que surgiu um Presidente que tem uma trajectória académica e intelectual, a qual lhe permitiu adquirir uma outra sensibilidade.

Canal – Isso vai permitir que Manuel de Araújo consiga gerir o município? Não irá ele perder-se nesse tipo de iniciativas culturais e intelectuais? Sabendo que ele só tem um mandato, muito curto, para já – acha que ele vai conseguir manter-se depois de 2013?

AF – Manuel de Araújo tem um mandato curto, sim. Ele não pode fazer obras de relevo, porque não terá tempo; mas pode fazer a diferença com este tipo de iniciativas, e muitas outras, práticas e com impacto imediato na vida das pessoas. Parte dessas iniciativas não custa dinheiro; apenas custa decisão e visão política. Ele pode resolver o contencioso que enfrenta nos mercados dos vendedores, o que estou convencido que irá resolver. É um problema ridículo herdado da anterior edilidade. Pelo que percebi o anterior edil, Pio Matos, concentrou os vendedores na antiga feira, a “FAE”, um lugar completamente remoto e fora de mão, em termos de mercado central e proximidade dos clientes. Claro que, por causa disso, tais vendedores tornaram-se apoiantes da mudança para Manuel de Araújo, porque viram nele a esperança de entendimento das suas preocupações. Depois da vitória de Araújo alguns vendedores abandonaram o tal recinto e foram para as ruas. Entretanto as pessoas começam a ficar incomodadas com essa venda desordenada na rua, o que também é legítimo.
Manuel de Araújo tem aqui uma oportunidade de gerir uma das muitas pequenas armadilhas sociais da tragédia dos comuns. A falta de regras claras sobre até onde podem ir e onde acabam os direitos dos vendedores informais; onde começam e acabam os direitos dos vendedores formais; e ainda como respeitar os direitos dos consumidores. Tudo isto necessita clareza de regras de funcionamento e relacionamento entre as pessoas, colocando os vendedores num espaço mais acessível aos clientes, resolvendo o assunto por vias económicas em vez de administrativas ou policiais. Aquilo é um problema de economia dos vendedores a retalho, que vende roupa, mas um problema que irá aumentar porque as pessoas aumentam na cidade e as oportunidades de produzir algo que gere não aumenta ao mesmo ritmo.
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