Grande
entrevista com o professor António Francisco
A “Tragédia dos Comuns” na voz de um zambeziano
“Em Maputo, a voz popular diz que a Assembleia da
República é a “escolinha do barulho”. Em Quelimane, fiquei com a sensação que
as universidades são verdadeiras escolinhas do silêncio, pois o debate
académico e estudantil é inexistente. Isto é pena.”
No nosso caso, podemos pensar que um dia seremos
surpreendidos por uma insubordinação por via das Forças Armadas? – “E porque
não? Um regime político tão centralizado, centralizador e dirigista; este
presidencialismo absolutista, a longo prazo convida a golpes ou mudanças
radicais, como foi a independência. Para se evitar tais mudanças precisamos de
mudar o sistema político, principalmente o sistema de Governo, sistema
eleitoral, criar um regime de efectiva independência de poderes.”
“Nós hoje só fazemos eleições para garantir a ajuda
dos doadores e para reconhecimento de Moçambique como uma caricatura de
democracia representativa.”
“A democracia funciona de forma inversamente
proporcional à evolução do preço internacional do petróleo. Quanto mais cresce
o preço do petróleo, mais reduz a democracia.”
“Se aqui o partido Frelimo conseguir dispensar os
doadores, não só do Orçamento do Estado mas do financiamento aos principais
sectores sociais, mais arrogante ficará. Por enquanto ainda têm que agir com
calma, mas também não precisam de muita, pois os doadores ajudam no fingimento
da alegada democratização e à descentralização. Acaba-se por ficar na
intolerância, e na subjugação da cidadania a um partido.”
“Num ambiente em que apenas uma elite com poder
político pode aspirar a participar no banquete do ambiente de negócios,
eventualmente surgirão processos de descontentamento e insubordinação.”
Maputo
(Canalmoz) – O professor António Francisco é um dos cidadãos moçambicanos que
nasceu (1958) no centro-norte do País e acabou por se radicar em Maputo.
Abandonou a sua terra, Quelimane, por uma série de razões. Nos últimos 10 anos
não visitou a sua cidade-berço. Esteve lá há dias. Isso serviu de mote para
esta entrevista que acedeu conceder ao Canal de Moçambique/Canalmoz.
António
Alberto da Silva Francisco é Director de Investigação do Instituto de Estudos
Sociais e Económicos (IESE), Professor Associado na Faculdade de Economia da
Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Doutorado e Mestre em Demografia pela
Australian National University (ANU) e Licenciado em Economia pela UEM
(Universidade Eduardo Mondlane).
Leia
na íntegra a entrevista, em jeito de pergunta-resposta:
Canal
de Moçambique/Canalmoz (Canal): Nos meses passados o Professor António
Francisco tem chamado à atenção para um assunto antigo mas poucos
investigadores se interessam por ele, no caso da sociedade moçambicana. Fê-lo
em relação à Cidade de Maputo; depois em Quelimane, em Junho passado; e ainda
em Nampula. Um tema que diz afectar todo o País, com um nome sonante, mas
poucos parecem conhecer o seu real significado. Ou seja, chama-lhe “Tragédia
dos comuns”. O que entende por “tragédia dos comuns” e qual o seu significado
em Moçambique?
António
Francisco (AF) – Tragédia dos comuns é, sem dúvida, um conceito controverso,
como aliás qualquer conceito que lida e mexe com os comportamentos, relações
sociais, preconceitos e hábitos individuais. De forma simples, tragédia dos
comuns é uma espécie de armadilha social, cultural e sobretudo económica, em
que as pessoas extraem o maior benefício possível de um bem comum, sem se
importarem com quanto contribuem para a sua produção e conservação. Uma
armadilha social decorrente do conflito entre os interesses individuais
concentrados no uso de recursos finitos considerados como bens comuns, bens
públicos de todos em geral e de ninguém em particular.
Numa
sociedade onde as pessoas são incentivadas a usar os recursos de forma livre e
desregulada acabam por utilizar tais recursos de forma abusiva e exagerada. Um
exemplo comum e conhecido do tempo em que os imóveis de rendimento foram
nacionalizados e proibidos, em que tínhamos a APIE (Administração do Parque
Imobiliário do Estado), os serviços de elevadores, de água e lâmpadas nos
espaços comuns foram completamente degradados. Quem se importava com as
torneiras abertas? Quanto tempo durava uma lâmpada de entrada; o que se passou com
os elevadores? Luzes sempre acesas. Ninguém queria saber. Por que economizar,
se o Estado se assumiu como único dono e responsável pelo bem comum? Por que
ser poupado e ter cuidado com as coisas se o vizinho também não se importava em
usar as coisas sem qualquer controle?
Canal: Mas isso acontece só nas cidades ou afecta todo o País? Por que
destacou recentemente a Cidade de Maputo, quando surgiu a controvérsia entre a
edilidade do Município e os informais da Cidade de Maputo, no início do
corrente ano? Mais recentemente foi a Quelimane e fez uma palestra muito
provocativa: “Como libertar Quelimane da tragédia dos comuns?” Isto é um
problema principalmente urbano, ou é um problema que afecta também o meio
rural, por exemplo, os recursos naturais como se tem falado tanto?
AF – Vamos clarificar
bem este assunto. O conteúdo da tragédia dos comuns não se define em função da
classificação urbano–rural. Eu levantei e escrevi sobre o assunto, em Fevereiro
passado, por causa do conflito entre a edilidade e os informais na Cidade de
Maputo, por o caso me ter despertado a atenção para o fenómeno. Primeiro que
tudo, a tragédia dos comuns é uma relação social, uma armadilha social criada
por instituições ou regras de jogo na sociedade, em que as pessoas são incentivadas
a tirarem o maior benefício do recurso com o menor custo possível.
O
termo é muito antigo. Remonta ao tempo da Grécia Antiga, a Aristóteles; mas foi
o biólogo Garret Hardin que popularizou a ideia de “tragédia dos comuns” num
pequeno mas seminal artigo publicado em 1968 na revista científica Science. Tem
sido dos artigos mais citados e usado na investigação científica, quer a favor
quer contra a ideia. Hardin chamou a atenção, no referido artigo, que existem
certos problemas na sociedade que não podem ser resolvidos por via de meios
técnicos, mas mudando as relações sociais, os valores humanos, as ideias de
moralidade e as percepções de responsabilidade pessoal. Exemplificando um tipo
de problema sem solução meramente técnica, Hardin destacou a relação entre o
crescimento da população humana e a capacidade de utilização dos recursos, num
planeta finito.
Canal: O que achou de Quelimane, após ter ficado mais de dez anos sem
lá voltar?
AF – Quelimane
retrocedeu dramaticamente, retrocedeu proporcionalmente ao retrocesso da
economia zambeziana. É uma cidade moribunda que se recusa a desfalecer e
morrer. Um bom retrato de Quelimane pode ser lido no livro intitulado, “A
Cidade Subterrânea”, do Élio Mudender. Ele chamou-lhe romance, mas para mim é
mais um documentário da tragédia quelimanense. Enquanto o autor descreve a
cidade mergulhada num pântano de miséria e pobreza, corrupção, inveja,
perseguições e vinganças, eu preocupo-me em entender a malha da tal armadilha
social.
Canal: Sendo professor universitário há cerca de trinta anos, o que
achou da comunidade universitária, sabendo que Quelimane, em poucos anos ficou
com cinco ou seis universidades?
AF – Pois é. Cinco
universidades e não foi possível encontrar uma única aberta e disponível para
acolher um dos debates que foram realizados no Salão Nobre do Município de
Quelimane. Pelo que parece, tinham interrompido as aulas para a realização de
testes e exames. É um sistema tipo escola secundária. Mas mais curioso e
estranho foi não existir um grupo, ou associação estudantil, empenhados em
promover debates de interesse actual. Quem anda a fazê-lo é o Presidente do
Município que tem cultura e sensibilidade académica.
Ainda
houve um professor que da Universidade Politécnica (????) enviou uma ou duas
turmas para a segunda palestra que fiz. Nessa altura partilhei com eles a
sensação que tive. Em Maputo, a voz popular diz que a Assembleia da República é
a “escolinha do barulho”. Em Quelimane, fiquei com a sensação que as
universidades são verdadeiras escolinhas do silêncio, pois o debate académico e
estudantil é inexistente. Isto é pena. Quando eu andava na escola secundária,
em 1973 e 1974, ainda antes da queda do regime de Caetano em Portugal, a 25 de
Abril; um núcleo de estudantes secundários, do liceu e da escola técnica,
tinham contacto com estudantes universitários de Lourenço Marques e trocavam
livros entre si. Foi assim que na altura li o meu primeiro livro proibido: “A
Origem da Família, da Propriedade e do Estado”, de Friedrich Engels. E agora,
quando não existe censura literária, temos o problema dos estudantes e jovens
lerem muito pouco os clássicos da literatura e da política.
De
qualquer maneira, do lado positivo, é interessante hoje irmos a Quelimane e
termos um Presidente do Município a dinamizar o debate e reflexão pública. É o
que está a fazer o Presidente Municipal Manuel de Araújo... No dia 21 de
Agosto Quelimane vai comemorar 70 anos como cidade. Coincidentemente, no dia
que fiz a primeira palestra, faltavam 70 dias para o dia do aniversário. Manuel
de Araújo anunciou publicamente, nesse dia, que aquela palestra era a primeira
de uma série de outras palestras sob o lema “Repensar Quelimane, Repensar a
Zambézia”. Foi nessa altura que apresentei o tema: “Como livrar Quelimane da
Tragédia dos Comuns”.
Depois
fiz uma outra sobre as oportunidades e constrangimentos da economia formal na
Zambézia. Entretanto, Manuel de Araújo quer continuar com os debates; ele tem
estado a convidar zambezianos, e não só; também outras pessoas que estejam
interessadas em apoiar o processo de mudança que está a acontecer em Quelimane…
Canal: Em Quelimane ou no País?
AF - Sim, em
Quelimane. Aquela cidade está a viver uma experiência única, na sua história.
Como é sabido, a partir de 7 de Dezembro último surgiu uma mudança de liderança
política nunca antes observada em Quelimane. Apesar de ser uma das únicas, ou a
única autarquia na Província da Zambézia com uma alternância de liderança
política, nas recentes eleições municipais, foi a primeira vez que surgiu uma
mudança realmente partidária. Quelimane começou a redefinir-se e a repensar o
seu lugar e papel como parte de uma das principais províncias moçambicanas, em
termos populacionais e não só.
Canal: A Beira também deveria fazer isso?
AF – Sim, a Beira devia
fazer. Só que na Beira a liderança política alternativa ao partido no poder no
resto do País, a Frelimo, não mostra substância e vigor intelectual. O
benefício e diferença em Quelimane é que surgiu um Presidente que tem uma
trajectória académica e intelectual, a qual lhe permitiu adquirir uma outra
sensibilidade.
Canal – Isso vai permitir que Manuel de Araújo consiga gerir o
município? Não irá ele perder-se nesse tipo de iniciativas culturais e
intelectuais? Sabendo que ele só tem um mandato, muito curto, para já – acha
que ele vai conseguir manter-se depois de 2013?
AF – Manuel de Araújo
tem um mandato curto, sim. Ele não pode fazer obras de relevo, porque não terá
tempo; mas pode fazer a diferença com este tipo de iniciativas, e muitas
outras, práticas e com impacto imediato na vida das pessoas. Parte dessas
iniciativas não custa dinheiro; apenas custa decisão e visão política. Ele pode
resolver o contencioso que enfrenta nos mercados dos vendedores, o que estou
convencido que irá resolver. É um problema ridículo herdado da anterior
edilidade. Pelo que percebi o anterior edil, Pio Matos, concentrou os
vendedores na antiga feira, a “FAE”, um lugar completamente remoto e fora de
mão, em termos de mercado central e proximidade dos clientes. Claro que, por
causa disso, tais vendedores tornaram-se apoiantes da mudança para Manuel de
Araújo, porque viram nele a esperança de entendimento das suas preocupações.
Depois da vitória de Araújo alguns vendedores abandonaram o tal recinto e foram
para as ruas. Entretanto as pessoas começam a ficar incomodadas com essa venda
desordenada na rua, o que também é legítimo.
Manuel
de Araújo tem aqui uma oportunidade de gerir uma das muitas pequenas armadilhas
sociais da tragédia dos comuns. A falta de regras claras sobre até onde podem
ir e onde acabam os direitos dos vendedores informais; onde começam e acabam os
direitos dos vendedores formais; e ainda como respeitar os direitos dos
consumidores. Tudo isto necessita clareza de regras de funcionamento e
relacionamento entre as pessoas, colocando os vendedores num espaço mais
acessível aos clientes, resolvendo o assunto por vias económicas em vez de
administrativas ou policiais. Aquilo é um problema de economia dos vendedores a
retalho, que vende roupa, mas um problema que irá aumentar porque as pessoas
aumentam na cidade e as oportunidades de produzir algo que gere não aumenta ao
mesmo ritmo.
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