sábado, 9 de março de 2013

Justiça precisa de operação de “mãos limpas”. Bastonário da Ordem dos Advogados em grande entrevista



Gilberto Correia deplora estado actual do sistema judicial no país
Nesta entrevista exclusiva com o Canalmoz/Canal de Moçambique, o bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique, Dr. Gilberto Correia, deplora a situação da justiça em Moçambique, nomeadamente pelo envolvimento de muitos agentes do judiciário na corrupção, no tráfico de influências, em situações de conflito de interesse e de enriquecimento ilícito que facilitam a vida dos criminosos mais poderosos. 

A credibilização da justiça não é uma corrida de velocidade, é uma corrida de fundo. Serão precisas mais reformas, mudanças de atitude, mais coragem, uma operação de “mãos limpas” para a expurgação de elementos perniciosos ao sistema, bem como de uma vontade política mais forte e coesa, para que o sistema de administração da justiça em Moçambique seja credível aos olhos do cidadão, seu principal destinatário.
Maputo (Canalmoz) - O bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) em Março vai deixar o cargo. Há eleições na Ordem e ele não se irá candidatar, por opção própria. Por esta razão o Canalmoz/Canal de Moçambique julgou relevante entrevistar Gilberto Correia, na Beira, para o balanço do seu desempenho durante quatro anos de mandato.
Nesta entrevista o ainda bastonário deplora a situação da justiça em Moçambique, nomeadamente pelo envolvimento de muitos agentes do judiciário na corrupção, no tráfico de influências, em situações de conflito de interesse e de enriquecimento ilícito que facilitam a vida dos criminosos mais poderosos. 
No seu estilo frontal, Gilberto Correia não deixou de “colocar o dedo na ferida”, voltou a referir que a justiça em Moçambique é normalmente forte com os fracos, e fraca com os fortes. 
Questionámo-lo sobre as implicações para o nosso país pelo facto do Estado de Moçambique ainda não ter ratificado o Tratado de Roma que cria o Tribunal Penal Internacional (TPI), tendo ele opinado que falta compreensão sobre o alcance do regime jurídico do tratado. Alegou, entretanto, que o facto não impede que os cidadãos do nosso país sejam submetidos à jurisdição do TPI, incluindo os mais altos dignitários. Tal como foi o caso de Muammar Khadafi, da Líbia...
Na entrevista que nos concedeu, o Dr. Gilberto Correia também falou da “esperança” que tem sido vincada no discurso de alguns agentes do judiciário e que dá indícios de vontade de mudança, mas concluiu que “infelizmente” a prática aponta, ou seja, demonstra o contrário. Neste ponto, sustenta que há interesses profundamente instalados na máquina da administração da justiça que querem e batem-se para que a justiça funcione deficientemente.
No que diz respeito ao legado da sua direcção na Ordem dos Advogados de Moçambique, ele refere: “Deixamos à sociedade civil o suscitar de debate sobre temas relevantes”, tendo em conta conferências e seminários abrangentes levados a efeito pela OAM.
Sobre o ensino de Direito, Correia diz que, em regra, está muito mal, e a repercussão será a degradação da qualidade dos formados, futuros profissionais do foro.
Como vem sendo nossa prática editorial transcrevemos a seguir, na íntegra, a entrevista exclusiva que o bastonário da Ordem dos Advogados concedeu ao Canalmoz/Canal de Moçambique.

Canal: Muitos conhecem-no apenas por bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique. Pode dizer-nos realmente quem é Gilberto Correia?

Gilberto Correia: Chamo-me Gilberto Caldeira Correia, a maior parte das pessoas que me conhecem de infância chama-me por Betinho (diminutivo porque respondo desde pequeno). Nasci em 21 de Agosto de 1972 na cidade da Beira (faço 41 anos este ano). Cresci e passei a maior parte da minha infância no Bairro das Palmeiras, na cidade da Beira. Como qualquer criança daquela altura, sofri o efeito das dificuldades e da escassez de bens essenciais derivado da guerra. Por exemplo, estudei sentado no chão desde a primeira à quarta classe na Escola Primária das Palmeiras. Brinquei como a maior parte das crianças brincavam naquela altura; com bolas de trapos e de sacos plásticos atados por cordas de sisal, com carrinhos de arame com rodas de lata, com fisgas e “abelhas quentes”, etc. Nós é que fazíamos os nossos brinquedos. Na altura, refiro-me à década de 80, estes eram os nossos “Ipads”, “playstations”, “smartphones” e “PC’s”. Pode-se dizer que naquela altura era muita mecânica e nenhuma electrónica e tecnologias de informação. Tínhamos muita criatividade para inventar brinquedos e brincadeiras. Por influência de alguns amigos do bairro e colegas da escola secundária iniciei a prática do basquetebol, modalidade que pratiquei durante muitos anos (nos clubes Palmeiras da Beira, Ferroviário da Beira, Costa do Sol e Desportivo da Beira). Pratiquei também outras modalidade, embora por menos tempo e com menos dedicação do que para o basquetebol, como vela, futebol, vólei, andebol e natação. 
Em 1990 tive de ir viver para Maputo para frequentar o curso de Direito naquela que era a única universidade do país: a Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Assim que terminei o curso de Direito, em 1995, regressei à Beira onde trabalhei simultaneamente como assessor jurídico do governador da província de Sofala e advogado em tempo parcial. Em 2004, deixei em definitivo o Gabinete do Governador de Sofala e passei a dedicar-me exclusivamente à advocacia e à docência universitária. Em 2008, respondendo a um clamoroso apelo por mudanças nos rumos que a OAM tomava e que não agradava à maior parte dos membros, com primazia para a jovem advocacia, concorri à presidência da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) e fui eleito bastonário com 69,1 % dos votos expressos. Em termos resumidos, muito resumidos, é esta a minha trajectória.

Canal: Em Março de 2008, Gilberto Correia foi eleito bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), naquilo que foram as eleições mais renhidas e concorridas de todos os tempos naquela agremiação. Como é que se sente neste momento de saída, já que a perspectiva e a meta eram arrumar a casa?

Gilberto Correia: Discordo que as eleições de 2008 da OAM tenham sido as mais renhidas de sempre. Uma eleição em que o candidato vencedor reúne 69.1% dos votos e o vencido 31.9% não pode ser considerada com propriedade como uma eleição renhida. Foi, sim, e apenas isso, a eleição com a maior participação de advogados da ainda curta história na Ordem. Neste momento, volvidos 5 anos e já no fim de mandato apossa-se de mim um sentimento de realização por ter feito um trabalho que considero globalmente positivo em prol da minha Ordem, da minha classe e do meu país.
Acima de tudo, o nosso trabalho foi feito com honestidade, integridade, coerência, comprometimento, disciplina e espírito de missão. Tive a sorte de ter uma equipa de trabalho excepcional que me ajudou bastante no desempenho das funções para as quais fui eleito. Aliás, a equipa de direcção foi determinante para o efeito.

Canal: A sua eleição para o cargo foi visto como uma viragem? Depois destes anos, acredita que valeu a pena ter concorrido naquela eleição histórica, em que suplantou o seu o tio, José Caldeira (irmão da mãe)?

Gilberto Correia: Valeu a pena ter concorrido para bastonário da OAM. Não porque concorri contra o meu tio, pois a relação de parentesco era apenas um pormenor irrelevante, uma mera coincidência. Valeu a pena porque juntamente com os meus colegas, conseguimos promover a mudança e o ímpeto evolutivo a que nos propúnhamos, por julgarmos que era o melhor para a advocacia moçambicana congregada na sua Ordem. Mesmo com o risco de ser considerado vaidoso – mas excesso de modéstia também seria vaidade – tenho a certeza que actualmente a OAM é uma instituição mais conhecida, mais respeitada, mais credível, mais interventiva, mais independente e muito mais activa fora da capital do país. É também uma instituição financeiramente saneada, sem dívidas, com uma capacidade de prestação de contas acima da média e totalmente diferente do que era em 2008, quando lá entrámos. 
Há uns dias atrás, um cidadão comum interpelou-me e perguntou-me se a OAM foi criada em 2008. Eu tive que explicar-lhe que a instituição foi criada em 1994 e entrou em funcionamento em 1996. Dizia-me que nunca tinha ouvido falar da ordem antes de 2008. Portanto, a nossa abordagem e tratamento de assuntos do interesse da administração da justiça, do estado de direito democrático e dos direitos humanos foi totalmente distinta dos nossos antecessores, de tal forma que justifica o termo “viragem” que usou na pergunta e fundamenta o sentimento de gratidão que me atravessa por ter tido oportunidade de fazer parte desta equipa jovem, dinâmica, irreverente, ambiciosa e profissional que esteve à frente da OAM nos últimos 5 anos. Sinto-me profundamente gratificado por ter feito parte deste momento de “viragem”.

Canal: Terá contado com a colaboração ou experiência do seu tio, Dr. Caldeira?

Gilberto Correia: Sem dúvidas que o Dr. Caldeira nos ajudou bastante. Nós não excluímos ninguém, antes pelo contrário. Sempre defendemos que a Ordem não é da direcção, ela pertence à comunidade de advogados, incluindo aqueles que não votaram ou votaram contra os órgãos sociais eleitos. Logo após a nossa eleição, pedimos ajuda ao Dr. Caldeira para vários assuntos e este nosso colega sempre nos prestou, de forma generosa e incondicional, o seu apoio. A ajuda do Dr. Caldeira nas várias tarefas da Ordem tem sido permanente. Só para dar um exemplo, sempre que há um Exame Nacional de Acesso o Dr. Caldeira tem-se disponibilizado para fazer parte do Júri que realiza as provas orais aos candidatos a advogados. Aliás, quem conhece a sua personalidade e grandeza de carácter certamente não se surpreenderá com essa disponibilidade e generosidade.

Canal: A edificação de um estado de direito e de uma Ordem, independente do poder político, constituíram o seu “Cavalo de Tróia”. Como o poder político terá reagido às suas críticas, que foram várias?

Gilberto Correia: Sim, quisemos mudar a OAM no sentido de torná-la mais independente do poder político e dos demais poderes, porque é isso que consta dos nossos estatutos e só assim poderíamos cumprir correctamente com as nossas atribuições. Em qualquer estado de direito democrático, a Ordem dos Advogados é um contra-poder (e não anti-poder) e contribui para o check and balances que uma sociedade democrática precisa de ter para que não haja excessos e para a fiscalização de alguns actos do poder ligados ao sector da administração da justiça. Não fazia sentido para nós que também a Ordem dos Advogados constituísse mais um órgão do poder do Estado. Dos órgãos da Administração da Justiça, a Ordem dos Advogados de Moçambique é a única que não provém do Estado. Os tribunais são criados pelo Estado, as procuradorias derivam do Poder do Estado, a PIC, as cadeias, todos esses mais o IPAJ pertencem ao Estado. A Ordem é uma organização profissional de advogados que pertence à sociedade civil, mas que exerce funções de interesse público. É uma parceira incontornável dos demais órgãos, mas na dialéctica (tese-antítese-síntese) da actuação de todo o judiciário, nós seriamos a antítese. Daí que o nosso alinhamento como antítese é muito mais útil ao próprio poder, à democracia, ao estado de direito e ao país do que o inverso. Exactamente porque nenhum órgão dos pilares da administração da justiça ocupava esse espaço (a própria Ordem também não o ocupava antes). 
A comparação da nossa luta pela afirmação de uma instituição independente e defensora do debate de ideias com a história do “Cavalo de Tróia” não é feliz. Pois, a afirmação da nossa independência institucional não foi feita à socapa ou às escondidas. Já no nosso programa eleitoral dissemos ao que vínhamos e essa mudança de posicionamento foi avisada, sufragada, apoiada pelos membros da Ordem e finalmente implementada. A reacção dos órgãos do poder foi normal e sem qualquer conflito evidente. 
Orgulho-me de poder dizer alto e bom som que durante 5 anos nunca recebi directamente qualquer pressão dos órgãos do poder para não dizer algo ou para agir de modo diverso daquele que a nossa consciência ditava. Sempre fomos respeitados como parceiros, sempre fomos ouvidos, independentemente de existir concordância ou discordância em relação às posições por nós assumidas. Tivemos sempre uma tolerância democrática exemplar por parte do poder. Certamente, fruto de uma compreensão do papel da Ordem dos Advogados na afirmação do estado de direito democrático.

Justiça precisa de operação de “mãos limpas”

“Credibilização da justiça não é uma corrida de velocidade, é uma corrida de fubdo”
Canal: Uma das suas divisas era credibilizar a justiça moçambicana. Olhando como quem está na sombra, terá conseguido resultados no que tange ao lema “Todos juntos por uma Justiça de Qualidade, mais célere e mais Credível”? 

Gilberto Correia: Não conseguimos resultados palpáveis na credibilização do aparelho da administração da justiça. A credibilização da justiça não é uma corrida de velocidade, é uma corrida de fundo. Serão precisas mais reformas, mudanças de atitude, mais coragem, uma operação de “mãos limpas” para a expurgação de elementos perniciosos ao sistema, bem como de uma vontade política mais forte e coesa, para que o sistema de administração da justiça em Moçambique seja credível aos olhos do cidadão, seu principal destinatário. 
Há ainda muito por fazer nesse domínio, até porque os resultados conseguidos na credibilização da máquina de administração da justiça são, em meu entender, fracos e decepcionantes. A credibilidade do nosso sistema de administração da justiça degrada-se dia após dia na percepção dos cidadãos deste país. Existem no discurso de alguns agentes do judiciário indícios de vontade de mudança, mas infelizmente a prática aponta, ou seja, demonstra o contrário.

Canal: Em alguma das suas intervenções enumerou a celeridade processual e a qualidade das decisões judiciais, como grandes requisitos para que o país tenha uma justiça mais pronta, bem assim pressupostos básicos para que os cidadãos possam obter maior qualidade das decisões produzidas pela máquina de administração da justiça. Pode apontar alguns resultados palpáveis desse empenho?

Gilberto Correia: A celeridade e a qualidade da justiça foram os temas centrais do 1°Congresso para a Justiça organizado pela OAM nos dia 13 e 14 de Setembro de 2012 em Maputo. Foram uma preocupação de fundo porque temos a percepção que temos uma justiça lenta e de pouca qualidade, cujos resultados ficam muito aquém das expectativas e necessidades dos cidadãos. As reformas que foram produzidas nessa matéria ainda não trouxeram resultados palpáveis e seguros. Talvez porque a reforma da justiça continua a ser feita pontualmente, colocando alguns “remendos” aqui e acolá, sem uma visão holística do sistema. O aparelho de administração da justiça carece de uma intervenção mais profunda, estruturada e global para que tenha a virtualidade de produzir resultados encorajadores. A criação dos Tribunais Superiores de Recurso, a formação de mais magistrados e advogados, o alargamento das competências dos tribunais distritais, a reforma do Código do Processo Civil de 2005 e 2009 são algumas reformas pontuais que ainda estão longe de produzir os resultados esperados, mas que trouxeram alguma esperança de mais celeridade e mais qualidade da justiça. Deposita-se alguma esperança no processo em curso de revisão da Constituição, esperando-se que este sirva de factor impulsionador de um novo ímpeto reformista no sector da justiça. Porém, e por outro lado, teme-se que este processo concentre-se mais sobre questões de natureza política do que sobre aspectos atinentes à boa administração da justiça.
É preciso perceber que há interesses profundamente instalados na máquina da administração da justiça que querem e batem-se para que a justiça funcione deficientemente. Pois tiram proveitos pessoais e ilícitos do mau funcionamento. A resistência à mudança e a luta contra as transformações será sempre enorme por parte dos titulares destes interesses. 
A mãe de todas as reformas no sector da justiça – aquela que poderá trazer os resultados que desejamos e que farão da justiça uma alavanca do desenvolvimento de Moçambique – será sempre feita com dor, suor e lágrimas.

Canal: O debate público em torno do sector da justiça foi igualmente outro mote durante o seu desempenho. Terá com isso tirado a OAM da letargia que se lhe imputava? De uma forma geral, que resultados terá proporcionado à sociedade?

Gilberto Correia: É verdade que a OAM, no cumprimento de uma das suas principais atribuições, foi a ignição para vários debates sobre justiça, estado de direito democrático, cidadania e direitos humanos. Durante os últimos 5 anos, várias intervenções foram feitas no sentido de trazer temas de interesse geral, alguns dos quais considerados politicamente ousados como a ratificação do Tratado de Roma sobre o TPI ou a questão de eleições livres e transição pacífica do poder no contexto da SADC que foi o lema da reunião anual da Associação dos Advogados de África Austral (SADC Lawyers Association) ocorrida em Maputo em Agosto de 2011. Neste domínio, o legado que esta direcção da Ordem deixa à sociedade civil foi suscitar debate sobre temas relevantes, compilar contribuições para a introdução de melhorias onde julgámos que podia ser feito melhor e chamar a atenção das nossas autoridades para os assuntos ligados ao sector que precisavam de intervenção. Enfim, procuramos fazer da OAM uma instituição independente, cumpridora das suas principais atribuições e responsabilidades sociais e dinamizadora de discussões e debates de ideias sobre temas relevantes no contexto dessas mesmas atribuições.

Faculdades de Direito de qualidade mais do que duvidosa

Temos visto licenciados em Direito que não conseguem fazer um simples requerimento com 4 linhas sem cometerem vários erros ortográficos.

Canal: Que resultados têm constatado da grande demanda que se regista na formação dos agentes do judiciário, da Polícia de Investigação Criminal (PIC), do Ministério Público, juízes e advogados?

Gilberto Correia: A formação de mais operadores do judiciário traz sempre resultados positivos no acesso à justiça. Porém, nos antípodas desse crescimento quantitativo surgem outros factores de erosão da credibilidade e qualidade da justiça administrada em maior quantidade. Designadamente, a proliferação de faculdades de Direito de qualidade mais do que duvidosa que conduz à degradação da qualidade dos formados, futuros profissionais do foro; a formação profissional no Centro de Formação Jurídica e Judiciária e o estágio profissional na Ordem que ainda ficam aquém do desejado e o aumento evidente da corrupção no judiciário, são factores que provocam a reversão de todo esse esforço quantitativo. Em síntese: aumentam factores relativos à quantidade do acesso à justiça, mas degradam-se aspectos relativos à qualidade e credibilidade da administração da justiça.

Canal: A qualidade de ensino moçambicano está dentro das suas expectativas no que tange a uma justiça célere e de qualidade?

Gilberto Correia: O ensino de Direito está, em regra, muito mal. Há excepções de qualidade, mas a regra é a falta de qualidade da formação académica. Em muitas instituições do ensino superior o curso de Direito é mais um negócio do que um meio para formar profissionais com capacidades técnicas e morais para atenderem convenientemente aos desafios que o presente e o futuro nos trazem. Défices de rigor na autorização dos cursos de Direito, lacunas na fiscalização das actividades e problemas de regulação do ensino superior por parte do Ministério da Educação têm ajudado a agravar a situação. Temos visto licenciados em Direito que não conseguem fazer um simples requerimento com 4 linhas sem cometerem vários erros ortográficos. Se as coisas persistirem como estão, iremos pagar essa factura muito alta durante muito tempo. A aventura de Bolonha que adoptámos, que se caracteriza por dar uma licenciatura em Direito em 3 anos, vem agravar ainda mais o cenário negro atrás descrito. Um aplauso para a Universidade Eduardo Mondlane, na pessoa do seu novo Reitor, que decidiu regressar ao ciclo de 4 anos de formação em Direito, numa clara demarcação em relação à herança do sistema de Bolonha.

Canal: À sua chegada na OAM o organismo tinha quatrocentos advogados e agora pouco mais do dobro. Como geriu um organismo onde pontificam pessoas diferentes, do ponto de vista de atitude, convicções e até mesmo ética e deontologia profissional?

Gilberto Correia: Gerir um organismo que congrega exclusivamente advogados é um desafio. O advogado é por natureza um profissional exigente, contestatário, tendencialmente independente e que não se importa de defender isoladamente a sua posição ainda que seja contra a maioria. Por isso, os advogados não aceitam muito bem imposições baseadas em relações de poder – e ainda bem que é assim. Os advogados para colaborarem precisam de ser convencidos e muito bem convencidos. Mas, como sou uma pessoa que gosta de desafios, apostei na liderança participativa e democrática como meio de conseguir levar os objectivos a que nos propúnhamos a bom termo. Felizmente, quase todas as decisões que esta direcção da Ordem tomou teve uma forte base de apoio dos seus membros. Exactamente porque eram, aos olhos da maioria, decisões participadas, relevantes, coerentes e transparentes. A liderança é uma característica fundamental para quem queira ocupar o cargo de bastonário da OAM. Um presidente da Ordem que não exerça uma boa liderança, que aja apenas como um bom gestor ou gerente, não terá grandes possibilidades de fazer um bom mandato. Dirigir uma classe tão distinta e tão peculiar como a dos advogados é uma experiência única e irrepetível na vida de qualquer pessoa. Estou orgulhoso por ter vivido essa experiência.

Canal: O bastonário denunciou a corrupção nos tribunais, suspendeu um ou outro advogado cotado (por exemplo Zelma Vasconcelos e Abdul Gani). Estes dois casos estiveram no furacão da Imprensa, alguma favorável à decisão, outra bastante crítica à sua posição. Como é que viveu esses momentos? E que ilações tirou? 

Gilberto Correia: É preciso clarificar que o bastonário não decide processos disciplinares. A disciplina dos advogados está entregue ao Conselho Jurisdicional da OAM, órgão em relação ao qual o bastonário, que é por inerência presidente do Conselho Nacional, não tem qualquer influência. A Dra. Zelma Vasconcelos teve duas suspensões; uma de carácter disciplinar, aplicada pelo Conselho Jurisdicional que impugnou junto do Tribunal Administrativo, outra de carácter administrativo, decidida pelo bastonário, relacionada com a falta de pagamento de quotas e respectivas multas. No caso do Dr. Abdul Gani desconheço qualquer pena de suspensão que lhe tenha sido aplicada. Julgo mesmo que isso não aconteceu. Mas, se eventualmente tivesse acontecido, não seria o bastonário a decidir, precisamente porque este órgão não possui poderes disciplinares para o efeito.

“Caso MBS”

Poderíamos mesmo questionar se houve investigação, visto que nada de concreto se soube a respeito. Houve total silêncio e secretismo sobre este assunto, até que de repente, e depois de algum clamor social, soubemos que não havia indícios de tráfico de drogas…


Canal: Criticou o total silêncio das autoridades sobre a investigação do “Caso Bachir” – acusado pela administração americana de ser “barão de droga”. Terão os criminosos capturado o poder político e entidades que administram a justiça no país?
Gilberto Correia: Critiquei a falta de transparência e o silêncio da parte da Procuradoria-Geral da República durante a investigação das graves acusações que impendiam sobre este cidadão. A sociedade não soube quem era o Procurador responsável pela investigação, nem quem eram os investigadores e por isso não foi possível escrutinar se a investigação estava mesmo a ser bem feita. Poderíamos mesmo questionar se houve investigação, visto que nada de concreto se soube a respeito. Houve total silêncio e secretismo sobre este assunto, até que de repente, e depois de algum clamor social, soubemos que não havia indícios de tráfico de drogas, mas tão-somente irregularidades fiscais. Foi muito estranha a falta de transparência, de informação e o secretismo que envolveu tão melindroso quanto importante assunto. Mais uma vez, a imagem da nossa investigação criminal ficou manchada. Não porque fosse obrigatório corroborar a percepção do Departamento do Estado norte-americano, mas porque era moralmente obrigatório conferir maior transparência e informação ao tratamento deste assunto delicado. Justiça não basta que seja feita, tem que parecer que foi feita. Creio que em termos de fé pura no sistema de investigação criminal, parece ser inquestionável que o sistema norte-americano é muito mais credível e com provas dadas do que o nosso sistema de investigação criminal. A gestão deste assunto de forma mais transparente poderia ajudar a credibilizar os resultados da investigação que foram publicados e a afastar qualquer suspeita de favorecimento que eventualmente pudesse existir.

Não posso dizer que a nossa máquina da administração da justiça tenha sido capturada pelos criminosos. Seria exagerado e injusto dizer isso. Mas já não tenho qualquer pudor em dizer que há muitos agentes do judiciário envolvidos na corrupção, no tráfico de influências, em situações de conflito de interesse e de enriquecimento ilícito que facilitam a vida dos criminosos mais poderosos. Estes não temem prestar contas à justiça em Moçambique pois sabem que só com muito azar serão condenados. Em regra, só os mais fracos e pobres que têm medo da justiça, porque normalmente em Moçambique a justiça é forte com os fracos e fraca com os fortes.


Canal: Na sua opinião, há que transformar mérito formal em material no que tange à Lei da Probidade Pública. Há relutância de várias pessoas visadas em renunciar cargos à luz do espírito desta lei. Há força da parte dos agentes do Estado competentes para agirem na perspectiva do seu cumprimento?
Gilberto Correia: No que tange à aplicação da Lei da Probidade Pública há que separar dois planos: o plano ético do plano jurídico-legal. 

No plano ético, não há dúvidas que comportamentos que antes eram permitidos são agora proibidos pela lei por serem considerados “ímprobos” ou anti-éticos. Neste contexto, qualquer político que tenha elevadas preocupações éticas não se escudaria na discussão sobre se a lei tem ou não aplicação retroactiva. Seria exigível que colocasse a ética acima dos aspectos jurídico-legais e agiria para se colocar fora do alcance material da situação agora descrita na lei como anti-ética.
Já no plano jurídico, há divergências de interpretação do sentido da lei no que toca à aplicação retroactiva ou não de determinados preceitos. A lei tem mecanismos para resolver rapidamente esse imbróglio. Nos termos da lei da probidade, compete à Comissão Central de Ética Pública estabelecer o sentido interpretativo que deve ser seguido na aplicação da lei, assim como esclarecer as dúvidas que possam existir. O problema surge quando se cria uma lei, mas não se erige o órgão de fiscalização e de garantia da boa aplicação dessa mesma lei. Esta Comissão tomou posse muito recentemente, já depois da lei estar em vigor e espera-se que com a brevidade possível pronuncie-se por forma a sanar estas divergências interpretativas da lei da probidade, permitindo que a mesma seja aplicada de forma uniforme e sem dúvidas.
Todavia, e exactamente numa lei cuja função primacial é afirmar servidores públicos mais éticos, é minha opinião que a ética deveria ser colocada em primeiro lugar pelos servidores públicos por ela abrangidos, libertando-se dos escudos jurídicos que os permitem manterem-se dentro daquelas situações materiais que são actualmente qualificadas pela lei como anti-éticas ou ímprobas.

Canal: O que esteve por detrás do “chumbo”, pelo Governo, do processo de candidatura do magistrado moçambicano, Ângelo Matusse, ao cargo de juiz do Tribunal Africano dos Direitos Humanos?

Gilberto Correia: Há posições divergentes sobre a verdadeira razão da não eleição do candidato moçambicano para Juiz do Tribunal Africano. A senhora ministra da Justiça diz que se deve ao facto do Governo ter retirado a candidatura. Mas, outras correntes de opinião, entre as quais eu me incluo, defendem que se deveu à falta de cumprimento das regras de transparência na escolha do candidato. Não obstante tudo isto, o simples facto de subsistirem dúvidas sobre a verdadeira razão da exclusão demonstra que o processo não foi, como deveria ter sido, transparente.

Canal: Qual é a razão a que leva Moçambique a não ratificar alguns convênios que o vinculam a certas regras ao nível do direito penal internacional?

Gilberto Correia: Julgo que a razão pela qual Moçambique não ratifica o Tratado de Roma que cria o Tribunal Penal Internacional (TPI) é o receio derivado da falta de compreensão do alcance do regime jurídico do Tratado de Roma e suas implicações no nosso país. Todavia, mesmo sem ratificar o tratado em causa, os cidadãos do nosso país podem ser submetidos à jurisdição do TPI. A Líbia não era signatária do tratado de Roma, mas por via da referência feita pelo Conselho de Segurança da ONU a Khadafi e seus filhos, estes foram abrangidos pela jurisdição do TPI. O Sudão também não é signatário deste tratado, mas pela mesma via o seu presidente Omar Al-Bashir está a ser processado pelo TPI. É ilusório pensar que não ratificando o tratado (Moçambique subscreveu livre e conscientemente o tratado mas não o ratificou) se previna a sujeição dos cidadãos dos respectivos países à jurisdição do TPI. Por outro lado, mesmo com o tratado em vigor na ordem interna, tal facto não implica automaticamente a intervenção do TPI. A jurisdição do TPI é complementar. Só é accionada se o Estado parte não quiser ou não puder julgar os seus próprios crimes e criminosos. Só aí, nos termos regime do tratado, é activada a jurisdição complementar do TPI.

Canal: Em Moçambique não é muito comum deixar-se um cargo depois do primeiro mandato. Depois de deixar a OAM, além da advogacia, irá se ocupar de mais alguma função?

Gilberto Correia: Pessoalmente nunca me guiei por lugares comuns. Concorri a um mandato de 5 anos, abdiquei de vários projectos pessoais e profissionais para dedicar-me ao exercício do cargo de presidente da OAM. Terminado o mandato para o qual concorri, volto a concentrar-me noutras prioridades pessoais, profissionais e familiares. Cinco anos é muito tempo para um único mandato. A média mundial de mandatos para um presidente de Ordem é de 3 anos. Em Moçambique também, por força de alteração legislativa, o mandato do bastonário da OAM será doravante de 3 anos. Ademais, há várias organizações congéneres em que é prática com convicção de obrigatoriedade que o presidente não se recandidata a novo mandato, não obstante ser-lhe legalmente permitido. É o caso, por exemplo, da Ordem dos Advogados do Brasil ou da Associação de Advogados de África Austral. Pessoalmente, acho esta uma boa prática e defendo que durante o mandato o titular do cargo faz o melhor que pode pela instituição. Terminado o mandato, deve-se disponibilizar-se para permitir a rotatividade, renovação e a injecção de novas energias, novas ambições e novas perspectivas no exercício do cargo. Ninguém é insubstituível e a renovação das lideranças é fundamental para o desenvolvimento das instituições.
Depois de deixar a presidência da OAM vou dedicar-me mais à minha profissão, à docência universitária e vou fazer o Doutoramento em Direito. Porém, até Agosto de 2014, exercerei o cargo de vice-presidente da Associação dos Advogados de África Austral (SADC Lawyers Association) para o qual fui eleito.
Para além disso, não tenho nenhum cargo em perspectiva. O poder não é um fim em si mesmo, é um meio para realizar fins nobres. Sou uma pessoa que se sente muito bem na sua pele e que não tem nenhuma especial atracção pelo exercício de cargos públicos. A advocacia e a academia bastam-me e realizam-me. A minha intervenção social pode ser feita doutra formas que não passem por um cargo formal. 


Canal: Alguma pergunta que não lhe colocámos que terá algo mais a dizer/acrescentar?
Gilberto Correia: Gostaria de agradecer aos meus colegas da Ordem por me terem concedido o invulgar privilégio de exercer tão nobre função de bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique. Proporcionaram-me uma oportunidade única de aprendizado e concederam-me a honra de servir a minha Ordem, a minha classe e o meu país nessa função. Vivi momentos inolvidáveis. Agradeço o inestimável apoio e orientação que recebi dos meus colegas de Direcção, dos funcionários Ordem, dos advogados em geral e de todos os que directa ou indirectamente contribuíram para o sucesso deste mandato. Saio da presidência da Ordem com um sentimento de gratidão, de muita honra e de dever cumprido. Sou feliz por isso. (Adelino Timóteo com imagens de arquivo)


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