terça-feira, 23 de junho de 2009

A Epopeia das Trevas (18)


No reino Jingola Estaline revive, e claro, as deportações também. O Grande Líder já criou os gulagui tropicais que sacanamente o Politburo chama zangos. É puro, é nacional e eles gostam. Assim, o extermínio dos negros está assegurado, para gáudio dos terroristas e especuladores internacionais.


É uma das suas músicas mais barulhentas preferidas, e impropera para o som desconjuntar os sentidos… elevar a identidade cultural. Mostrar a mitologia não ancestral, mas a actual, dos lençóis petrolíferos, dos campos diamantíferos, das vastas extensões de terras incultiváveis, famintas. Ela desvenda no corpo a dança, mas esqueceu o desvendar do mistério da luta de libertação que se actualizou na destruição nacional.
Ouvir música é como uma grande trovoada, e não são necessários o ribombar de mil trovões e a cegueira de mil raios alaranjados. Condimentados pelas máquinas monstruosas dos novos construtores que furam passeios, ruas, terraços, que destroem e reconstroem os solos, a solo e em conjunto dos escapes livres das rápidas motorizadas, autorizadas para desafiar Júpiter.

Dançar, embebedar, drogar.
Como o pai de Voltaire hoje diria: uns filhos em prosa, outros em verso. Os pais serão sempre chamados caducos e calhambeques, porque não alimentam as loucuras dos seus filhos. Já não temos filhos. Duvido que alguém os tenha. Serventes de Brutus, para roubar e assassinar pais. Para dançarem, beberem e dormirem.

Olhei para o que restava naquela casa. Duas ventoinhas que funcionavam com sorte. Estavam entrevadas, avantajadas de ferrugem. A televisão trabalhava à pancada. Por causa das falhas da energia eléctrica o frigorífico ligava, desligava. A cama descuidada, sempre desabava na hora do deitar. Dos tetos da casa de banho, da cozinha e do corredor, os pingos de água comodamente destruíam o sonho de um lar. Deixaram de ser tectos, eram grutas com quase estalactites. O casal sexagenário trabalhou e lutou pela sua pátria. E parvamente na tal luta da libertação, e agora pela pátria e família abandonados, resta-lhes o consolo da sonoridade musical, o raiar dos momentos românticos, do mais um recenseamento… para ficar tudo na mesma e os mesmos receberem sempre as mesmas pensões.

Tanto petróleo e diamantes! Quanta mais riqueza mais pobreza. Onde os cofres estão muito cheios, há muita escravidão. Escravos tecnológicos das novas tecnologias. Escravos dos modernos Cavalos de Tróia. Oiço as viuvinhas que saltam nas árvores, mostrando o manto do seu canto. Nunca acreditarei no Homem, enquanto existir um só ser humano que passe fome.

A minha caminhada prossegue. Vejo que a macroeconomia se desenvolveu, o que permite a muitos jovens lavarem carros nas ruas. Destas escolas de lavagens sociais nascerá o novo homem, adaptado à nova vida. Com os panos enxugam a chaparia, mais um produto acabado está pronto para entrega. De cigarros na boca trocam impressões.
- Sabes onde está o rei?
- Sei! Está de visita privada nos brancos.
- Deixou-nos sem luz.
- A minha mãe quando paga a conta, reclama que ficamos muitos dias às escuras, e que o valor a pagar devia diminuir, mas é o contrário. Sobe muito.
- Quando o rei voltar seremos mais iluminados.

O crescimento económico é factual. Um bando de lobinhas sirigaita o desenvolvimento da economia. Na precoce rendição infantil de crianças da prostituição, ratinham a perseguição dos lobões
Na entrada de um prédio ouve-se barulho metálico. Um jorro de água vertical surge. Uma jovem aborrecida quer saber o que se passa.
- Mingo, porque é que você fez isto?!
- Parti a torneira com uma pedra, porque não me querem dar a chave do cadeado. Tenho carros para lavar.
- E quem vai limpar a inundação?
- Não sei.
Duas motos rápidas passam em grande velocidade. Sem escape, o barulho provoca dores de cabeça. Os alarmes dos carros estacionados disparam. Tapo os ouvidos com os dedos.
Na janela de um prédio o ar condicionado arde. Os basbaques à distância acotovelam-se. Alguns afirmam com desmesurado orgulho.
- É bem feito! É bem feito! Gostam de morar nos prédios.

Imagem: Angola em fotos

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