terça-feira, 30 de junho de 2009

Guiné-Bissau. O narcoestado (2)


Pelas ruas poeirentas assomam veículos que não passam despercebidos num parque móvel de derribo como o guineense.

EL PAÍS
POR FRANCESC RELEA 28/06/2009

Kalliste, na praça Che Guevara, é um dos locais frequentados pelos amantes da ostentação no meio da miséria. À meia-noite, enquanto soa a música ao vivo, chegam carros Hummer, Porsche Cayenne, Mercedes, Audi. Últimos modelos. Do seu interior saem negros fortes ou tipos com acento latino-americano acompanhados de meninas atractivas. Alguns destes veículos dormem no hotel 24 de Setembro, com fama de ter a melhor piscina de Bissau. Aos fins-de-semana, jovens de boa planta e aprendizes de modelo passam aqui a tarde, em companhia de bom uísque, móvel na mão ante a mirada de guarda-costas. São cenas de um mundo que parece irreal, em contraste brutal com a realidade de qualquer rincão deste país maltratado.

O narcotráfico começa a ser um problema a partir de 2005, com o regresso de Nino Vieira, o grande actor político das últimas décadas que foi derrotado seis anos antes. Pescadores da região costeira de Biombo descobrem um bidão flutuando na água empurrado pela corrente. No seu interior há um pó misterioso de cor branca. Os nativos experimentam o achado: uns usam-no para emplastrar o rosto e sentem tonturas; outros crêem que se trata dum fertilizante, mas as plantas e hortaliças morrem, e incluso há os que o usam para marcar as linhas dum campo de futebol. O caso alcança amplo eco mediático quando se comprova que se trata dum bidão de cocaína extraviado dum carregamento lançado à água desde um barco.

Em finais de 2007, Carmelita Pires, ministra da Justiça da época, acode a Lisboa numa conferência internacional sobre narcotráfico e apresenta uma relação de políticos, militares e polícias da Guiné-Bissau envolvidos em actividades ilegais. "Era um trabalho sobre quem é quem", explica. Pires está ameaçada de morte.

Naquele mesmo ano, Amador Sánchez Rico, chefe do escritório da África Ocidental da Comissão Europeia, recebe uma ordem de escuta do seu chefe em Bruxelas: "Ocupa-te da Guiné-Bissau. As coisas estão-se complicando". Chegam notícias inquietantes que indicam que uma quarta parte da droga colombiana, peruana ou boliviana que se consome na Europa transita pela nova rota africana. Os informadores sobre o terreno falam de carregamentos de cocaína por mar e ar em ilhas desabitadas, em pistas de aterragem abandonadas, de aviões que lançam a carga em pára-quedas, de mulas (correios humanos) que transportam cápsulas com droga no estômago. "Há histórias de película impossíveis de contrastar", explica Sánchez Rico. As autoridades guineenses pedem ajuda, Portugal pressiona, Espanha abre embaixada e os organismos internacionais começam a reagir: Nações Unidas, União Europeia (UE), Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO)...

A antiga colónia portuguesa começou a receber periodistas em busca de histórias de narcotraficantes. Quem espere encontrá-los à volta da esquina pode levar uma tremenda frustração. O que salta à vista é um mundo de pobreza e abandono, onde a maioria sobrevive como pode. Bissau é uma cidade com a rede eléctrica destruída pela guerra de há 10 anos – tem luz quem dispõe de grupo de gerador eléctrico –, sem água corrente e, praticamente, sem rede de telefonia fixa. Uma quarta parte dos meninos morre antes dos cinco anos. Dois terços dos 1,7 milhões de habitantes vivem debaixo do umbral da pobreza. O PIB nominal per capita é de 220 dólares, entre os quatro mais baixos do mundo, segundo o FMI. O funcionamento dos hospitais depende em 90% da ajuda exterior ou de acordos para programas específicos. Os empregados públicos, com excepção dos militares, não recebem o seu salário desde Janeiro. Muitos edifícios, como o antigo palácio presidencial, exibem os destroços da última guerra (1998-1999).

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