segunda-feira, 28 de outubro de 2013

100 dólares no bolso, era considerado inimigo da revolução e julgado em tribunal popular revolucionário.



O NOVO MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES

A imprensa espanhola reportou o facto de a filha mais nova do Rei de Espanha, Dom Juan Carlos, a Infanta Cristina, estar a ser investigada pela justiça fiscal do seu país por, eventualmente, ter efectuado pagamentos ilícitos com cartões de crédito de uma sociedade patrimonial que detém conjuntamente com o seu marido, Iñaki Urdargarin, para onde este terá desviado dinheiros públicos. Nos últimos tempos, o marido da Princesa tem sido muito seguido pela justiça por utilização irregular da fundação que detinha e pela qual fazia passar todo um conjunto de acções irregulares.

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Sobre a Infanta espanhola pesam suspeitas de ter feito, entre 2007 e 2008, pagamentos com dinheiros públicos de, por exemplo, 4 livros da saga Harry Porter, ter comprado alguma roupa, feito assinatura de revistas, adquirido um par de botas em Nova Iorque, pernoitado num hotel de Moçambique, ter comprado flores, pago os encargos da estadia de um fim-de-semana em Roma, assim como ter comprado um chocolate numa passagem pelo aeroporto de Genebra, entre outros gastos.
Arrolados os custos dos diversos custos, os investigadores constataram que os gastos dos duques espanhóis excedem em muito o nível normal dos seus rendimentos. Daí que Infanta possa vir a ser indiciada por ilicitude na manipulação de recursos. As autoridades políticas espanholas de forma alguma têm competência para interferir no processo de investigação. Elas deixam a justiça realizar a tarefa para que está vocacionada.
Mesmo que tais acontecimentos causem um dano de imagem à monarquia, a sociedade espanhola acompanha os seus desenvolvimentos com serenidade. E o Rei de Espanha não saiu à rua para dar “um puxão de orelhas” seja a quem for. Essas são as regras de uma sociedade democrática, inclusive, na monarquia constitucional como a espanhola.
Os actos de corrupção e outros demais ilícitos previstos na lei são perseguidos, com os órgãos competentes a tomarem conta deles. São investigados e, quando julgados, recebem a punição equivalente, doa a quem doer…
No dia 15 deste mês, o Presidente da República de Angola fez uma intervenção na Assembleia Nacional, em que discorreu sobre o estado da Nação. Uma das passagens do seu discurso na Assembleia Nacional que mais prendeu a atenção da sociedade foi aquela em que reafirmou o empenho do Executivo em promover a introdução e a adopção de leis internacionais sobre o combate à corrupção, designadamente a Convenção das Nações Unidas sobre a Corrupção. Porém, logo de seguida, o PR alertou para aquilo que apodou de uma “confusão deliberada” feita por organizações de alguns países ocidentais com o intuito de passar a ideia de que “o africano rico é corrupto ou suspeito de corrupção”.
Quer dizer que o Presidente da República transitou facilmente de uma clara declaração de boas intenções para a denúncia também clara de haver má-fé por parte de alguns na compreensão de certo enriquecimento que hoje se verifica no nosso continente.
Nesse seu vertiginosos embalo, o PR procurou teorizar sobre tal enriquecimento, e socorreu-se da abordagem clássica do fenómeno da acumulação do capital, a que Adam Smith chamou “previous acumulation” e, depois, Karl Marx consagrou como a “acumulação primitiva do capital” ou “acumulação originária do capital”.
Karl Marx, no seu trabalho seminal, “O Capital”, analisou o fenómeno na Europa, entre os séculos XVI e XVIII. Karl Marx tomou a Inglaterra como o seu modelo, concluindo que foi o processo de acumulação primitiva do capital que originou as grandes transformações da Revolução Industrial na Europa. Para esse ilustre estudioso, a acumulação originária decorreu nos seguintes termos: i) uma grande concentração de recursos (dinheiro, ouro, prata e terra) nas mãos de um pequeno grupo de proprietários; ii) formação de um enorme contingente de indivíduos desprovidos de bens e obrigados a trabalhar para outrem, para os proprietários de terras e donos de manufacturas.
Essa circunstância terá resultado, historicamente, das riquezas acumuladas pelos negociantes europeus com o tráfico de escravos, com o saque colonial e a apropriação privada das terras comunais dos camponeses, assim como o proteccionismo às manufacturas nacionais. Um processo em que intervém também o confisco e a venda a baixo preço das terras pertencentes à Igreja pelos governos revolucionários. De acordo com Karl Marx, o advento da Revolução Industrial fez com que a acumulação primitiva fosse substituída pela acumulação capitalista.
No seu discurso, o PR não explicitou o modo como as novas burguesias africanas e, em particular, a angolana conseguiram a proeza de enriquecer tão rápida e facilmente. Limitou-se, sim, a dizer que há aqui um modelo próprio de acumulação. Mas não nos disse nada sobre as consequências económicas, sociais e políticas desse enriquecimento. Seria interessante se o fizesse, para pudermos, então, perceber melhor a sua originalidade.
No modelo original a que o PR fez referência, já é bem fácil perceber que há, tendencialmente, grande concentração da riqueza nacional nas mãos de poucos, tal como é crescente o contingente de desprovidos de bens que já perderam a esperança de vir a partilhar o bem-estar que o país podia proporcionar aos seus filhos.
Creio, também, que o Sr. Presidente da República não desconhece que a acumulação primitiva do capital que ele glorifica e que se está a processar em Angola não tem por base o mérito mas, sim, a cor partidária que se veste, as afinidades familiares, ou cumplicidade com o poder. Sabe ainda que ela não redundará numa melhoria do bem-estar geral mas, sim, no fausto de uns poucos. E sabe mais: que esse fausto só se manterá enquanto o poder estiver nas mesmas mãos. Depois, quando o país se democratizar e os grandes gigantes de pés de barro se confrontarem com a concorrência leal, tais impérios desmoronarão, como um baralho de cartas…
O Sr. Presidente da República manifestou vontade teórica de ver aplicadas, de modo rigoroso, as leis angolanas contra a corrupção. Porém, deixou claro que, na sua perspectiva, o modo como se constituíram os grandes grupos económicos em Angola nada tem a ver com actos de corrupção, com o desvio de fundos públicos para fins pessoais, ou com o tráfico de influências.
Por isso, eu também gostaria que ele nos ajudasse a perceber como foi possível, em tão pouco tempo, ter-se assistido a esse verdadeiro “milagre da multiplicação dos pães”… Pois, de uma forma mais ou menos geral, todos tivemos como ponto de partida a pobreza... Uma pobreza que até foi aprofundada pelas políticas sociais e económicas que, sob a sua orientação, foram aplicadas durante muitos anos e de um modo implacável.
Recordo, apenas para avivar a memória de alguns que, há pouco mais de 20 anos, quem guardasse em casa um saco de açúcar, podia ser preso sob a acusação de açambarcamento. E quem fosse apanhado com uma nota de 100 dólares no bolso, era considerado inimigo da revolução e julgado em tribunal popular revolucionário.

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