É raro o dia em que me ponho na estrada e não vejo condutores de
veículos automóveis a ralhar desalmadamente peões que, no seu direito,
atravessam as ruas pelas respectivas passadeiras. E a pergunta que sempre me
vem a cabeça é: esta gente é ignorante, porque não sabe que esse é um direito
que cabe aos peões ou é pura arrogância de quem se acha privilegiado por se
encontrar dentro de uma viatura capaz de destruir a vida de um peão “num
minuto”?
É o que se passa com a persistente tentativa de introduzir o conceito de
“manifestações não autorizadas” no léxico da nossa ordem
jurídico-constitucional formal, em que não se encontra. Sem delongas, vale a
pena transcrever aqui na íntegra (e sublinhar o aspecto pertinente) o que
diz a Constituição vigente sobre a liberdade de manifestação:
Artigo 47º
1.É garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e manifestação
pacífica e sem armas, sem necessidade de autorização e nos termos da
lei.
2.As reuniões e manifestações em lugares públicos carecem de prévia
comunicação à autoridade competente, nos termos e para efeitos estabelecidos
por lei.
Tão claro como isso e todos sabemos – pelo menos os juristas o sabem –
que nenhuma lei ou atitude deveria contrariar este dispositivo.
Por isso, ignorância ou arrogância?
Provavelmente nesta altura já não é nem uma coisa nem outra. Trata-se
pura e simplesmente já de algum desespero que sempre leva algum matiz de
arrogância.
Que se saiba, os jovens ditos “revus”, sempre cumpriram com os ditames
da Constituição e da lei. Mas, são duramente reprimidos como aconteceu, mais
uma vez, neste 27 de Maio, pela causa mais do que justa de pedirem explicações
por dois jovens desaparecidos, desde o 27 de Maio do ano passado. E os nossos
meios de comunicação são orientados a falar em mais uma “manifestação não
autorizada”. Um conceito inexistente.
Pois, como o desespero quase sempre se associa a alguma arrogância, lá
vimos que na mesma altura é organizada uma outra manifestação – esta sim,
desautorizada pela ética e moral positivada no âmbito das associações
desportivas – a favor de Sª Exª o Senhor Presidente da República, por ter
“autorizado” a realização do Campeonato do Mundo de Hóquei-em Patins, em
Angola. Ainda merecemos isso!?
É este mesmo aparente desespero que se vê quando se observa o nervosismo
com que se encara a não passagem de Obama por Angola, em mais um périplo por
África. Vê-se que o homem decididamente não está disposto a patrocinar regimes
que não se renovam, no continente da sua paterna origem, diferentemente da
senhora Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que veio
prestar aqui uma vénia a um regime que arrogantemente expulsou o seu próprio
Desk-Office.
É, também aparentemente, este mesmo desespero que, para desviar as
atenções, leva o Chefe do Executivo a repreender publicamente o por si próprio
nomeado Governador do Bengo, e com o aplauso de meios de comunicação certamente
orientados para o efeito. Uma prática inaudita em países sãos, em que
desencadearia uma autodestruição do próprio governo. Até porque as verbas para
a realização de projectos só agora vão ser libertadas e entregues a uma
entidade ad hoc, que não o próprio governo local, do Dr. João Miranda.
Bem se vê que os que esperam pelo estabelecimento de um poder autárquico sério
em Angola, rebus sic stantibus, terão muito que esperar.
Perante certa situação de tensão que se vive hoje no país, para a qual
não faltaram chamadas de atenção atempada, melhor seria evitar-se todo este
“esforço de Sísifo”, com o sacrifício de inocentes, e olhar-se para as
propostas sensatas que continuam a ser feitas, na base das lições da História,
embora já com alguma incompreensão por parte de franjas que se vão radicalizando.
O 27 de Maio não se apagará com novos 27 de Maio, iludidos com anódinos
comunicados do Bureau Político de um partido no poder impedido de pensar de
acordo com a realidade. A não ser que se esteja a laborar deliberadamente sob o
lema insensato: desestabilizar para melhor reinar.
Luanda,
31 de Maio de 2013 (www.marcolinomoco.com)
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