segunda-feira, 20 de julho de 2009

A Epopeia das Trevas (25)



Acobertadas de glória pelo término favorável da batalha no gueto, olhavam sem horizontes para os destroços vendíveis. Escapulidas no recomeço da luta sem alternância, sugeriu-se o inventário dos acontecimentos:
- Não dá para conferir. Num bairro onde ninguém gosta de confusão, repentinamente vem à tona mais um episódio da Guerra de Tróia.
- Nunca se investiu, instituiu tanta fome, como nestes tempos badalados, baldados. Muitos guetos sem futuro, como este, serão os formigueiros que alimentarão o reencontro inexorável da Guerra de Tróia. Os esfomeados não temem a morte, ela abastece-os regularmente com cestas básicas aeriformes, de fomes. Está sempre latente nos corações a revolta candente. Será uma grande revolta mundial, juridicamente universal. Quem a impossibilitará de terminar? Não haverá muralhas, fossos, mares que lhe resistam. Multitudinários esfomeados mutados em baratas, moscas, ratos. Afasta-se um, vem dois, três. Assim falará a nova Guerra de Tróia.
- Deve ser por isso que os romanos não gostavam de Cartago.

O barqueiro Caronte reservava uma barca, sempre preparada para singrar no rio Idas. Levava nas ondas os restos das almas dos ousados sábios ou opositores. Erradicara-se definitivamente qualquer manifestação de sabedoria ou oposição.

Os Politburo nasciam sábios, congeniais autorais. Dominavam, fustigavam as epístolas da oposição. Mas os trovadores, exilados internos sem mácula pedravam letras. De chofre aparecia o barqueiro Caronte, esfregava as mãos de avarento, e inquiria se havia almas para as Idas. Se respondiam, por enquanto ainda não, Caronte impacientava-se.
- Não brinquem com a ludologia. A política não é arte de cartomantes. Daí não advém futuro. Da outra Revolução Francesa que há-de vir, enviam-me muitas almas. Sempre foi assim, sempre assim será.

Os Politburo subiam os degraus do poder sem esforço. No altar cultuavam as vastas sobremesas das multidões sem história. Que de mãos estendidas, flácidas, migalhavam o culto da fome. Tudo é composto de convicção.
- Não há nenhuma revolução que nos vença, que nos convença, ou que nos tire do lugar. Governamos demasiado, porque o tempo só conta enquanto estamos vivos. Governamos mal? Os acólitos aplaudem-nos pela boa governança. Outros povos, especialmente este que dirigimos, os Jingola, envolvem-se, deixam-se levar na felicidade que lhes prometemos nos discursos de fim de ano. Antes viviam na extrema escravidão, hoje estão libertos. É verdade que existem alguns constrangimentos, mas o sorvedouro dos milhares de leis decretadas solucionarão a emancipação dos povos. Finalmente a miséria acabará, atingiremos, bateremos as metas dos recordes do desenvolvimento.
- É?! Acontece que fiz um grande investimento na compra de duas mil barcas, e muitos barqueiros para as conduzirem, que correm o risco de perder o emprego. Não estão a cumprir o contrato, exijo indemnização. Arranjem aí umas epidemias, matanças de criminosos, qualquer coisa… não se sobrevive sem cadáveres.
- Velho Caronte, não escorregue, cadáveres não faltarão. Fique calmo que brevemente tombarão outra vez mil por dia.
- Não acredito em tal maldição! Vão fazer outra revolução?
- Nem tanto a norte… vamos fazer outra guerra mais devastadora.
- Pendo dessa garantia. Importa-me que cumpram as normas contratuais.
- É verdade que demasiamos a honrar os nossos compromissos, mas quando os lesados nos pressionam, vasculhamos a papelada e accionamos o pagamento. Só trabalhamos debaixo de pressão. Somos como uma locomotiva a vapor.

Imagem: http://www.interconect.com.br/clientes/pontes/diversos/caronte.htm

Sem comentários: