domingo, 6 de outubro de 2013

A importância da alternância em regime democrático - Marcolino Moco





Lubango – Em pausa consciente na minha actividade político-partidária, sabem todos que me tenho dedicado à participação cívico-política, enquanto mo permitem tanto as minhas actividades profissionais bem como o outro múnus que me impus, a saber, uma reflexão sobre os problemas de África, analisados particularmente na vertente das Ciências Jurídico-Políticas.

Fonte: Club-k-net
Considerei, pois uma oportunidade excelente, para a continuidade da exercitação desses múnus, esta, a proporcionada pelo convite do Dr. Raul Danda, meu agora já velho amigo e confrade das lides académicas, Presidente do Grupo Parlamentar da UNITA, maior Partido da Oposição em Angola, neste grave e complexo momento da História de Angola.

O tema sobre o qual me pedem para falar – A importância da alternância política em regime democrático –  vem suscitando, por sinal, um interesse cada vez maior em Angola. Basta lembrar que há pouco mais de um ano, fui solicitado a debruçar-me sobre a mesma questão, numa conferência à convite da Fundação Agostinho Neto, o que significa que a preocupação também vai cirandando nas próprias hostes da ampla família do chamado “partido da situação”. 

A verdade é que eu, que por uma questão didático-metodológica, procuro dar às minhas intervenções, pelo menos nos aspectos introdutórios, um cunho tanto quanto possível, teórico-reflexivo, não encontrei nem daquela vez (no caso da Fundação Agostinho Neto) nem desta vez, nas minhas investigações, referências bibliográficas a abordar de forma clara e expressa, a questão da alternância política em democracia.

Isso leva-me imediatamente a uma primeira conclusão importante: a alternância política, não é em si mesmo, um elemento constitutivo de qualquer regime político – monárquico ou republicano e nas suas mais diversas composições e recomposições histórico-espaciais – mas apenas uma resultante inevitável do funcionamento pleno do sistema democrático.

Isto para a situação da alternância em regime democrático (porque, como veremos, em todos os regimes políticos, a alternância é inevitável, desde que não concedamos ao termo um sentido bastante restritivo).

O que eu quero aqui dizer é melhor retratado nas palavras do jurista e académico português José Manuel Júdice quando diz: “... de certa forma a alternância é mais uma consequência da existência de uma sociedade aberta do que um atributo autónomo a partir do qual se possa definir um regime.”

No contexto da História das Ideologias e da Filosofia Política, este conceito estrito de alternância deduz-se especialmente da ideia de “participação”, defendida por Rouseau, no chamado Século das Luzes, que decorre do funcionamento do “contrato social”, em que o Povo ( o conjunto de cidadãos) não podendo decidir directa e diariamente sobre o assuntos dos seu país, pela sua imensidão territorial e complexidade das matérias a abordar, diferentemente do que se passava nas pequenas cidades-estado da Grécia, ou nas nossas pequenas comunidades tradicionais, delega este poder aos seus eleitos, reservando-se, no entanto, o direito de controlar e alterar a composição dos eleitos de forma periódica.

O “princípio de participação” combina-se também, e de certa forma, com a ideia de “autonomia” agregadas por John Locke e Montesqueu, no âmbito do pensamento liberal, segundo a qual cabe ao Povo estabelecer os limites de actuação dos governantes.

Mas, num sentido mais lato que abarca, ipso facto, esse sentido restrito, o que é afinal a alternância política? Aqui, alternância é a mudança ou substituição por outras pessoas físicas ou correntes de pensamento e opinião política, programadas ou não, de titulares dos mais importantes cargos de decisão política. Como é fácil de deduzir, neste sentido a alternância é inevitável, porque inelutável decorrente da lei da vida (envelhecimento, morte ...) e das convulsões histórico-políticas.

Mas, voltemos a falar agora da alternância em sentido estrito, que é aquele que nos junta aqui nesta conferência – a alternância em regime democrático. Deve ficar claro que, desde logo, se trata do regime democrático do tipo liberal, que é o que está consagrado, formalmente, no nosso sistema jurídico-constitucional histórico e presente, desde o  fim do Partido-Estado (ou regime de partido-único, como se queira chamar) que vigorou de 1975 até 1991/92.

Discutir-se, como alguns o tentam insinuar, se este tipo de democracia serve ou não para as nossas condições, esta é outra matéria autónoma bem complexa que nos desviaria da proposta que aqui nos traz. Mas diga-se também, fora de questão, se tivermos em conta o consenso nacional reunido em torno desse assunto.

Na sequência do que afirmamos acima, socorrendo-nos até das palavras de José Júdice, no caso de um regime democrático formal como o nosso, a alternância não é um atributo do mesmo, mas sim, consequência do funcionamento efectivo de uma sociedade aberta, em que a conduta dos principais actores políticos, corresponde minimamente aos postulados ético-morais e jurídico-constitucionais que devem conformar a sociedade politicamente organizada como a nossa.

Na verdade, no estrito quadro de regime democrático em que agora estamos a examinar o conceito de alternância, ela resultaria, essencialmente, da flutuação da vontade da maioria da população eleitoral e não dos anseios  particulares de indivíduos desejosos de vê-la concretizada mecanicamente ou mesmo de partidos políticos eventualmente impedidos do exercício directo do poder político, muitas vezes por muito tempo.

Assim, a única forma de a obterem seria que esses indivíduos e esses partidos políticos influíssem, de forma democrática, e em igualdade de circunstância, com o partido ou partidos no poder, na mudança da vontade dessa maioria o que nos sistemas abertos é facilitado pelo desgaste que a detenção do poder prolongado provoca e com a ajuda, sobretudo, das sucessões geracionais.

É justamente ali onde reside a grande vantagem da democracia do tipo liberal, que a tem levado a superiorizar-se sobre outros modelos de sociedade contemporâneos, como aconteceu em relação ao praticamente finado sistema do “socialismo real” ou “comunismo” .

Pois, no modelo liberal, pelo menos no plano interno, a alternância acontece como algo natural, porque não há aqui do que Adriano Moreira chamaria de recurso sistemático e abusivo aos mecanismos da “Clandestinidade do Estado” ; o que, por sua vez, desencoraja o recurso ao direito natural de resitência (passiva, defensiva ou agressiva) que pode não favorecer transições pacíficas e mais ou menos harmoniosas das sociedades políticas, de uma para as fases seguintes do seu desenvolvimento histórico .

Haveria aqui muitas considerações a tecer como, por exemplo, a alternância dentro dos próprios partidos independentemente de assumirem ou não o poder; distinguir a alternância de partidos de governo (em sede de eleições legislativas) da limitação dos mandatos do Presidente da República (no caso de Angola, se deve ser vista puramente sob o ponto de vista formal ou do ponto de vista material e de acordo com a sua ratio legis); e muitas outras questões inseridas no contexto das particularidades africanas do funcionamento da democracia, que são essenciais e pré-condicionantes do presente tema, mas humanamente impossíveis de abordar de uma só vez, de forma séria e sem prejudicar a programação destas jornadas.

Por isso sou “obrigado” a prosseguir em direcção a uma conclusão de uma forma um tanto quanto decepcionante para vós, lídimos representantes de um partido político que legitimamente almeja o alcance do poder, dizendo que, na minha opinião, não haverá alternância política em parte nenhuma do Mundo, enquanto o regime democrático estiver bloqueado como é o caso actual em Angola.

Na verdade, como tenho insistido, nós temos um regime democrático formal, desde a entrada em vigor da Lei Constitucional de 1992 (se abstrairmos de que a distribuição dos poderes na Constituição de 2010 não é de modo algum democrática, sobretudo quando se combina com a forma de eleição do Chefe de Estado e titular absoluto do Executivo). Mas, o nosso regime real, não tem nada a ver com uma democracia.

Eu acrescentaria aqui mais de três páginas para descrever os aspectos e a caracterização do nosso regime real, mas seria também contraproducente em termos de tempo que isso levaria, até porque, creio, já o fiz, em termos gerais, no meu opúsculo “Angola: a terceira alternativa” que se encontra aqui a vossa disposição, onde explico, de acordo com o meu entendimento, ancorado na experiência pessoal e complementado por diversas leituras, os meandros porque passamos, até chegar a esta situação.

Eu tenho evitado utilizar uma terminologia radical, como por exemplo classificar de ditadura este regime, por causa da responsabilidade que me incumbi, de estar disponível para contribuir para uma saída pacífica desta situação, no que o uso de determinados termos pode não ajudar.

As vozes já extremadas chamam a isso de “cobardia” ou até “bajulação”, uma atitude indispensável para a sobrevivência em regimes dessa natureza. Mas hoje, com a ajuda de clássicos como Aristóles e Montesquieu, estou em condições de afirmar, sem romper a ponte das minhas proposições pacíficas, que estamos perante um regime monárquico de despotismo esclarecido, em que do mesmo modo, não se facultará qualquer tipo de alternância natural, porque não se trata de uma sociedade aberta.

Por isso é que vou dizer, se me permitirem a franqueza, que neste momento em Angola a única instituição que está a tentar actuar de forma consentânea com o que a situação exige, são os chamados “Jovens Revolucionários”, que de forma pacífica, estão a colocar a questão fundamental no centro das atenções: questionar um regime que proclamando-se democrático, não permite a realização pacífica de manifestações; não dá explicações sobre pessoas desaparecidas nessas manifestações à boa maneira da repressão no Chile de Pinochet; não permite a livre circulação de ideias, controlando e censurando despudoradamente a comunicação pública e contra a própria Lei de Imprensa, permite o monopólio da imprensa privada nas mãos de parentes e colaboradores do Chefe de Estado, impedindo de forma agressiva e prepotente todos os outros sectores da sociedade em investir nessa área; e um titular da chefia de Estado e de Governo, dos mais antigos do mundo em regime democrático do nosso tipo, satisfeitíssimo por ainda não ter encontrado quem o substituía, sequer no seu partido, que ele dirige há mais de 34 anos; entre outras atrocidades.

Perante a intervenção tempestiva dos chamados “revus”, o regime déspota esclarecido que é, reage agitando o anzol da discussão dos problemas sociais da juventude que são também uma consequência e não causa, da fechadura de um regime que esbanja recursos enormes para passar a riqueza para as mãos de uma minoria despudoradamente restrita e exportadora do capital, para construir ou consolidar alianças manifestamente imorais no exterior, bem como em actos de pura manipulação da opinião pública nacional e internacional.

Neste sentido, dos poucos actos certeiros da actividade dos principais líderes da oposição que apreciei nos últimos tempos, foi o questionamento, perante a complacente comunidade internacional, sobretudo perante Portugal, com as responsabilidades históricas que tem em relação a Angola, sobre toda esta situação aqui vivida, paradoxalmente exacerbada desde o alcance da paz, a partir de 2002.

Eu acho, com toda a franqueza, que “rebus sic stantibus”, em Angola não haverá o tipo de alternância em que os meus amigos estavam a pensar, quando me convidam para vir falar aqui.

Em Moçambique onde estive há tempos e me colocaram questões muito próximas, a situação do bloqueio democrático até nem é tão grave, até porque já vão no segundo Presidente da República, desde o estabelecimento do sistema democrático. Mas os defensores das 2ªas alternativas já estão no terreno recorrendo novamente ao método do sacrifício de vidas humanas para pressionar as primeiras alternativas.

Em Angola, felizmente, graças ao bom senso da oposição, e da UNITA, em particular, estamos por enquanto à salvo de um tipo dessas situações que seria grave, tendo em conta a nossa situação anterior relativamente recente.

Mas o tempo vai passando e alguém poderá vir novamente accionar os mecanismos da violência, em resposta à violência dos detentores do poder de Estado que já grassa a olhos vistos. E depois violência chama violência. O poder, onde não incluo o MPLA genuíno, porque também bloqueado, pensa que o povo e a juventude em especial, deve trocar a sociedade aberta por benesses pontuais, por isso vai fechando cada vez mais e vai reprimindo cada vez mais, ao mesmo tempo que rasga o seu sorriso cínico na Rádio, na Televisão e nos jornais, todos já “comprados” e a serem comprados até em Portugal, um lugar onde se repercutiam as opiniões angolanas impedidas de se expressar em Angola, para o resto do mundo.

A única saída que eu vejo é a tal terceira alternativa pacífica, por iniciativa de alguém, em que se conduza o país para a negociação e adopção de um novo Pacto de Regime, que devolva a sociedade aberta a Angola, com garantias mesmo para os que continuaram a cometer infracções graves às regras do convívio democrático a que temos assistido. O pior é continuarmos assim.

A situação actual legitima já que tal pacto, que deve ser adequadamente pensado, e acima de interesses imediatos e meramente partidários ou pessoais, possa ser exigido por via do recurso ao direito natural à resistência (pacífica mas não passiva).

Nisso, penso eu, se não é o próprio Presidente da República ou o MPLA a tomar a iniciativa, a UNITA tem uma grande oportunidade para poder encabeçar democráticamente esta resistência, enquadrando no melhor sentido a resistência dos Jovens Revolucionários, sem tolher-lhes a autonomia, encontrando uma plataforma de entendimento com outros partidos políticos, com ou sem assento parlamentar interessados e todos os sectores vivos da sociedade também interessados, até mesmo dentro do MPLA, na medida do possível.

Doutro modo a oposição vai acabar desgastada na rotina, correndo sempre atrás do prejuízo e imitando a mesma lógica do poder imposto. Não haverá eleições livres (ou mesmo eleições sequer) nem autárquicas, nem legislativo-presidenciais; e não haverá “importância” de nenhuma “alternância em regime democrático” em Angola, nos próximos 20 ou mais anos.

E terão mesmo os mais jovens, e até muitos mais velhos saudáveis e longevos, que preparar-se para assistir a festa de posse do príncipe que já aí está, à vista de todos.

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NR: Texto dissertado pelo autor na manha desta quinta-feira, 03, no âmbito das II jornadas parlamentares do Grupo Parlamentar da UNITA que decorre sob o lema “Grupo Parlamentar da UNITA  Próximo do Cidadão”, na cidade de Lubango, província da Huíla.

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