Os quatro manifestantes durante a sua
detenção em Malanje. Kanda vai com as mãos ao ar.
Rafael Marques
de Morais
MAKAANGOLA
Angola continua a celebrar a sua recente
eleição como representante africano no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
No país, milhares de pessoas sofrem diariamente, porque vivem nos antípodas da
Angola apregoada nos corredores mundiais da diplomacia e são tratados como
seres inferiores. E no entanto, Angola é o país que vai usar o seu exemplo para
resolver os vários problemas do continente.
Os casos que se seguem demonstram, mais uma vez, a verdadeira natureza do regime político que vigora neste país.
Um cidadão consciente e solidário
Em Malanje viveu-se um estado de sítio porque quatro jovens subscreveram uma carta dirigida ao governador provincial, na qual comunicavam a realização de uma manifestação para repor uma data como feriado nacional.
Dias antes, um dos organizadores da iniciativa, Santos Kuntuala, telefonara-me para me comunicar que um cidadão guineense morrera durante a operação de recolha de imigrantes efectuada a 19 de Dezembro, a cargo das autoridades policiais e migratórias.
Santos Kuntuala manifestou interesse em acompanhar-me às mesquitas para investigar o caso. Encontrámo-nos. Pelo caminho, aproveitou para abordar as três questões que mais o preocupavam: a relação dos angolanos, autoridades e povo em geral com outros povos africanos; as manifestações, a repressão e os níveis de consciência social e política em Angola; e, finalmente, a detenção de um seu irmão, em Outubro passado, por suposto abuso de poder.
Explicou-me, no entanto, que a sua prioridade era, acima de tudo, ajudar-me a confirmar o caso do cidadão guineense, de modo que se pudesse prestar a devida solidariedade para com os irmãos africanos. Deixou para o fim o assunto familiar, e isso comoveu-me, apesar de eu não o ter demonstrado.
Partilho com os leitores o diálogo que mantive com Santos Kuntuala porque me parecem da maior relevância as preocupações de um cidadão que os agentes da segurança de Estado descreveram como “desgraçado”, “morto de fome”. Reaprendi, com ele, o admirável poder do exercício pleno da cidadania e, por isso, respeito a ordem de prioridades que ele estabeleceu.
A Morte do Imigrante Guineense, ou o Desprezo pelos Outros... Africanos
Circulámos pelas mesquitas do Hoji Ya Henda, a 22 de Dezembro, em busca de informação sobre a identidade do cidadão guineense e as circunstâncias do seu desaparecimento. Interagimos com vários fiéis. Falámos bastante sobre o grau de inferioridade que as autoridades reservam aos imigrantes da África subsaariana, excepto os ricos e influentes.
Esse tratamento veio a ser confirmado a 30 de Dezembro, depois de eu ter recebido um telefonema a dar-me conta de que o enterro de Mamadou Moutara Haidara, de 24 anos, se realizaria naquela tarde, no Cemitério do 14, no Cazenga.
O cidadão da Guiné-Bissau falecera no dia seguinte à sua detenção, a 20 de Dezembro, no Hospital Américo Boavida. Só passados nove dias, na tarde de 29 de Dezembro, as autoridades policiais comunicaram oficialmente o falecimento à comunidade islâmica, que, por sua vez, informou a família.
Segundo depoimentos recolhidos na mesquita, Mamadou Haidara foi detido minutos depois de ter saído do hospital onde recebera tratamento médico. Os seus captores confiscaram-lhe os medicamentos, apesar de ele ter explicado que o seu estado de saúde era bastante delicado. Encarceraram-no em condições degradantes e o seu estado de saúde rapidamente se deteriorou. Mamadou vivia em Luanda há dois anos.
O baile dado pelas autoridades policiais, migratórias, hospitalares e burocráticas à comunidade islâmica para a entrega e enterro do corpo foi arrepiante. Segundo um dos membros da comunidade, o Serviço de Migração e Estrangeiros informou-os de que não tinha conhecimento do caso e lavou as suas mãos. O hospital recusava-se sequer a prestar qualquer informação sobre o morto sem a presença policial. A comunidade passou a manhã toda no vai-e-vem, entre o município de Viana, onde se concentram os imigrantes presos, na Cadeia do 34. A comunidade islâmica teve de contribuir com 16 mil kwanzas, exigidos pela Polícia, para o pagamento do boletim de óbito, diligenciado pelos serviços prisionais da Cadeia do 34 junto do Hospital de Viana.
Obviamente, recaiu também à referida comunidade o ónus de adquirir o caixão e cobrir todas as despesas do funeral. Dias antes, alguns dos líderes muçulmanos, um dos quais residente em Angola há mais de dez anos, também se encontravam detidos, apesar de apresentarem documentos legais. “Eles viam que é estrangeiro, recebiam os documentos, punham num saco grande e obrigavam-nos a subir nos autocarros. Só no centro de detenção é que começavam a verificar os documentos e a chamar um por um”, afirmou um dos membros.
Perdi o ânimo para escrever sobre o assunto. Mais uma vez, o Santos Kuntuala acompanhara-me nas diligências. Falei com ele sobre o modo como os cidadãos angolanos, se manifestavam aparentemente satisfeitos com a operação policial realizada, como se a exaltação da xenofobia fosse a lei.
Desejei-lhe Feliz Ano Novo.
A Manifestação de Malanje
A 4 de Janeiro, recebi um telefonema da cidade de Malanje, a dar conta da detenção de quatro jovens que tentaram organizar uma manifestação naquela província. Perguntei pelos nomes dos detidos: João Kanda, 24 anos; Sampaio Kimbamba “Vunda Yetu”, 34 anos; António Kakienze, 35 anos; e Santos Kuntuala, 34 anos.
Então, qual foi o plano?
“O Kimbamba teve a ideia de aproveitar-se da data de 4 de Janeiro para ajudar a despertar as consciências em Malanje, através do anúncio da realização de uma manifestação”, explicou-me o Santos já após a sua libertação.
Durante anos, o 4 de Janeiro vigorou como feriado nacional, em memória das vítimas do massacre perpetrado pela tropa colonial portuguesa contra milhares de angolanos na Baixa de Cassanje.
Como mote para a manifestação, Kimbamba e os seus três amigos exigiam a reposição da data como feriado nacional. Fotocopiaram umas centenas de panfletos em folhas A4, que depois cortavam ao meio, para racionalizar os recursos, e lá foi o Kimbamba a Malanje distribuí-los com os outros dois nativos, o Kakienze e o Kanda.
A 19 de Dezembro, Kimbamba e os seus companheiros formalizaram a intenção de realizarem uma manifestação nos dias 3 e 4, com uma carta endereçada ao governador provincial, Norberto dos Santos “Kwata Kanawa”.
Como medidas cautelares, a Polícia Nacional despachou três helicópteros de Luanda para Malanje, com o propósito de reforçar o sistema de prevenção e repressão da manifestação que havia sido montado. A segurança de Estado também despachou os seus efectivos a partir de Luanda, e só o Santos Kuntuala tinha dificuldades em chegar a Malanje por falta de dinheiro para o transporte público. Teve de ser o Kimbamba, um técnico de frio, a pagar do seu bolso para que o seu co-organizador e amigo pudesse estar presente no local da manifestação. Santos Kuntuala chegou a Malanje a 4 de Janeiro, por volta das 10h40, minutos antes do início previsto da marcha.
As medidas incluíam proibir os jovens do sexo masculino de circularem no centro da cidade, assim como proibir que se reunissem muitos homens durante o período previsto para a manifestação. A polícia também se dispôs a confiscar telemóveis e a interromper todos aqueles que estivessem a falar ao telefone, no centro, de modo a controlarem efectivamente a circulação de informação. Os jovens que circulassem com mochilas ou sacos nas zonas consideradas sensíveis pelas autoridades policiais eram revistados. Foram bloqueadas diversas vias.
Desde o dia 28 de Dezembro, a residência de João Kanda encontrava-se sob forte dispositivo de vigilância permanente. A 4 de Janeiro, notando o silêncio de Kanda e Kakienze, que ali se hospedara, os agentes da segurança invadiram a residência. Os jovens haviam escapado durante a noite.
Intrépidos, juntaram-se os quatro e, com os seus dísticos, concentraram-se num ponto não previsto pela polícia. Tiveram tempo de mostrar os dísticos e foram logo detidos. Excepto um sopapo desferido contra o Kimbamba, por ter refilado contra os empurrões dos agentes policiais, não houve a habitual sessão de tortura e espancamentos que a Polícia Nacional habitualmente reserva para os manifestantes.
Estes reclamam apenas terem sido vexados com impropérios proferidos por vários agentes policiais e da segurança, como “parecem feiticeiros”, “mijões”, “mortos de fome”, “desgraçados”, entre outros. Foram filmados e fotografados.
No interrogatório, segundo Kuntuala, repetiu-se a principal pergunta destinada a todos os manifestantes: Quem são os mandantes da manifestação?
“Eu respondi que o mandante é o hino nacional porque diz: ‘honremos o passado e a nossa história (...), assim como a Constituição, que nos confere esse direito de manifestação’”, relata Kuntuala.
Lembrei-me, com admiração, o que me dissera um amigo sobre a estratégia de campanha do MPLA por altura das primeiras eleições de 1992. Esse amigo tinha participado da concepção da estratégia, que se traduzia numa fórmula de “iniciativas de cosmética (70 por cento)” e exploração e maximização das fraquezas dos adversários (30 por cento), sobretudo da UNITA, através da propaganda.
Hoje, a estratégia comum de campanha dos jovens manifestantes é extraordinária: eles exploram e maximizam as fraquezas do executivo do presidente José Eduardo dos Santos com ironia. Essas fraquezas são, sobretudo, a incapacidade de respeitar o espírito e a letra da Constituição e de resistir à tentação de reprimir o seu próprio povo.
A outra grande vantagem dos jovens assenta na ausência de uma estratégia comum sobre os objectivos de manifestação, de mobilização popular e angariamento de recursos para o efeito. Porque não há estratégia, o regime desconfia até do vento e vê fantasmas por todo o lado.
Finalmente, a corrupção e as intrigas do poder levam a que os principais conselheiros de segurança do presidente o mantenham prisioneiro do medo. Transmitem a ideia de que o seu poder está ameaçado e demandam mais poderes, fundos e impunidade para eliminarem tais ameaças e enriquecerem ainda mais.
O Irmão Detido e a Extorsão Policial
Hoje, o Santos Kuntuala encontrou-se comigo para tratar finalmente da terceira questão. Trata-se do caso do seu irmão Bento Tomás Alexandre, de 21 anos, detido desde 11 de Outubro passado, por ter agarrado pelos colarinhos um automobilista que insultava o seu pai à porta de casa, no Bairro Vila Flor, no Tala Hady, em Luanda.
O pai, Samuel Domingos, trabalhava na drenagem da água estagnada à sua porta, quando fez sinal ao automobilista em causa para que abrandasse a velocidade ao passar pela poça de água, para não sujar os transeuntes. Segundo conta a família, o automobilista parou a viatura diante de Samuel Domingos, mandou-o “à merda” e recebeu a mesma resposta, gerando-se uma discussão. Ao ouvir a troca de palavras, Bento Alexandre, que se encontrava no interior da residência, saiu em defesa do pai. Samuel Domingos repreendeu o filho por ter agarrado pelos colarinhos o automobilista, que se encontrava na viatura. E deu-lhe a tarefa de ir fazer compras, segundo afirmou.
Em menos de meia hora, o automobilista, cuja identidade a polícia se recusa a revelar à família, surgiu diante do portão da família em causa, com vários agentes da investigação criminal, e ordenou a detenção do jovem. Este foi encaminhado à 12ª Esquadra da Polícia Nacional. Falei com a mãe do jovem, Bernardete Tomás.
“Perguntei directamente ao queixoso por que ele ordenara a detenção do meu filho. Ele respondeu-me que o meu filho o tinha agarrado pela camisola. Não disse mais nada”, explica a mãe.
“O investigador [cujo nome não foi revelado à família] exigiu ao meu marido o pagamento de US $1,500 dólares ao queixoso para libertar o meu filho]”, denuncia a mãe. “O meu marido exigiu que lhe passassem uma factura. Aí a polícia inventou que o meu filho roubou o telefone do senhor. No local só estavam os três. O senhor nunca saiu do carro e o meu filho apenas o agarrou. O meu marido insistiu na factura”, prossegue.
Ainda segundo a mãe, “o investigador é tão matumbo que não foi possível saber mais nada ou explicar o que fosse. Ele só queria o dinheiro. O meu filho está detido há quase três meses sem nunca ter sido ouvido”..
Falei com o detido, Bento Tomás, que foi transferido para a cadeia de Viana (Bloco 2, 2º Andar). O jovem reitera que nunca foi ouvido e que só na cadeia de Viana soube que o processo que o acompanhou o indicia de “tentativa frustrada de furto de viatura”.
“Nunca me interrogaram, nunca me tiraram da cela para ser ouvido. Aqui em Viana também não. O procurador junto da 12ª Esquadra disse-me apenas que se eu e o meu pai não pagarmos os US $1,500 o meu caso será grave e não saberei onde poderei acabar”, afirma o jovem por via telefónica.
Despedi-me do jovem, que se encontra adoentado, e disse ao Santos Kuntuala que escreveria sobre o seu irmão também. A polícia nem sequer permite que a família saiba o nome do queixoso, e o suspeito não recebeu qualquer notificação sobre o crime de que lhe acusam. Apenas informação oral.
E, assim, passei o dia de hoje com o Santos Kuntuala e ao telefone com os seus familiares. Espero que da próxima vez ele me fale de si. Escrever é o que posso fazer.
Os casos que se seguem demonstram, mais uma vez, a verdadeira natureza do regime político que vigora neste país.
Um cidadão consciente e solidário
Em Malanje viveu-se um estado de sítio porque quatro jovens subscreveram uma carta dirigida ao governador provincial, na qual comunicavam a realização de uma manifestação para repor uma data como feriado nacional.
Dias antes, um dos organizadores da iniciativa, Santos Kuntuala, telefonara-me para me comunicar que um cidadão guineense morrera durante a operação de recolha de imigrantes efectuada a 19 de Dezembro, a cargo das autoridades policiais e migratórias.
Santos Kuntuala manifestou interesse em acompanhar-me às mesquitas para investigar o caso. Encontrámo-nos. Pelo caminho, aproveitou para abordar as três questões que mais o preocupavam: a relação dos angolanos, autoridades e povo em geral com outros povos africanos; as manifestações, a repressão e os níveis de consciência social e política em Angola; e, finalmente, a detenção de um seu irmão, em Outubro passado, por suposto abuso de poder.
Explicou-me, no entanto, que a sua prioridade era, acima de tudo, ajudar-me a confirmar o caso do cidadão guineense, de modo que se pudesse prestar a devida solidariedade para com os irmãos africanos. Deixou para o fim o assunto familiar, e isso comoveu-me, apesar de eu não o ter demonstrado.
Partilho com os leitores o diálogo que mantive com Santos Kuntuala porque me parecem da maior relevância as preocupações de um cidadão que os agentes da segurança de Estado descreveram como “desgraçado”, “morto de fome”. Reaprendi, com ele, o admirável poder do exercício pleno da cidadania e, por isso, respeito a ordem de prioridades que ele estabeleceu.
A Morte do Imigrante Guineense, ou o Desprezo pelos Outros... Africanos
Circulámos pelas mesquitas do Hoji Ya Henda, a 22 de Dezembro, em busca de informação sobre a identidade do cidadão guineense e as circunstâncias do seu desaparecimento. Interagimos com vários fiéis. Falámos bastante sobre o grau de inferioridade que as autoridades reservam aos imigrantes da África subsaariana, excepto os ricos e influentes.
Esse tratamento veio a ser confirmado a 30 de Dezembro, depois de eu ter recebido um telefonema a dar-me conta de que o enterro de Mamadou Moutara Haidara, de 24 anos, se realizaria naquela tarde, no Cemitério do 14, no Cazenga.
O cidadão da Guiné-Bissau falecera no dia seguinte à sua detenção, a 20 de Dezembro, no Hospital Américo Boavida. Só passados nove dias, na tarde de 29 de Dezembro, as autoridades policiais comunicaram oficialmente o falecimento à comunidade islâmica, que, por sua vez, informou a família.
Segundo depoimentos recolhidos na mesquita, Mamadou Haidara foi detido minutos depois de ter saído do hospital onde recebera tratamento médico. Os seus captores confiscaram-lhe os medicamentos, apesar de ele ter explicado que o seu estado de saúde era bastante delicado. Encarceraram-no em condições degradantes e o seu estado de saúde rapidamente se deteriorou. Mamadou vivia em Luanda há dois anos.
O baile dado pelas autoridades policiais, migratórias, hospitalares e burocráticas à comunidade islâmica para a entrega e enterro do corpo foi arrepiante. Segundo um dos membros da comunidade, o Serviço de Migração e Estrangeiros informou-os de que não tinha conhecimento do caso e lavou as suas mãos. O hospital recusava-se sequer a prestar qualquer informação sobre o morto sem a presença policial. A comunidade passou a manhã toda no vai-e-vem, entre o município de Viana, onde se concentram os imigrantes presos, na Cadeia do 34. A comunidade islâmica teve de contribuir com 16 mil kwanzas, exigidos pela Polícia, para o pagamento do boletim de óbito, diligenciado pelos serviços prisionais da Cadeia do 34 junto do Hospital de Viana.
Obviamente, recaiu também à referida comunidade o ónus de adquirir o caixão e cobrir todas as despesas do funeral. Dias antes, alguns dos líderes muçulmanos, um dos quais residente em Angola há mais de dez anos, também se encontravam detidos, apesar de apresentarem documentos legais. “Eles viam que é estrangeiro, recebiam os documentos, punham num saco grande e obrigavam-nos a subir nos autocarros. Só no centro de detenção é que começavam a verificar os documentos e a chamar um por um”, afirmou um dos membros.
Perdi o ânimo para escrever sobre o assunto. Mais uma vez, o Santos Kuntuala acompanhara-me nas diligências. Falei com ele sobre o modo como os cidadãos angolanos, se manifestavam aparentemente satisfeitos com a operação policial realizada, como se a exaltação da xenofobia fosse a lei.
Desejei-lhe Feliz Ano Novo.
A Manifestação de Malanje
A 4 de Janeiro, recebi um telefonema da cidade de Malanje, a dar conta da detenção de quatro jovens que tentaram organizar uma manifestação naquela província. Perguntei pelos nomes dos detidos: João Kanda, 24 anos; Sampaio Kimbamba “Vunda Yetu”, 34 anos; António Kakienze, 35 anos; e Santos Kuntuala, 34 anos.
Então, qual foi o plano?
“O Kimbamba teve a ideia de aproveitar-se da data de 4 de Janeiro para ajudar a despertar as consciências em Malanje, através do anúncio da realização de uma manifestação”, explicou-me o Santos já após a sua libertação.
Durante anos, o 4 de Janeiro vigorou como feriado nacional, em memória das vítimas do massacre perpetrado pela tropa colonial portuguesa contra milhares de angolanos na Baixa de Cassanje.
Como mote para a manifestação, Kimbamba e os seus três amigos exigiam a reposição da data como feriado nacional. Fotocopiaram umas centenas de panfletos em folhas A4, que depois cortavam ao meio, para racionalizar os recursos, e lá foi o Kimbamba a Malanje distribuí-los com os outros dois nativos, o Kakienze e o Kanda.
A 19 de Dezembro, Kimbamba e os seus companheiros formalizaram a intenção de realizarem uma manifestação nos dias 3 e 4, com uma carta endereçada ao governador provincial, Norberto dos Santos “Kwata Kanawa”.
Como medidas cautelares, a Polícia Nacional despachou três helicópteros de Luanda para Malanje, com o propósito de reforçar o sistema de prevenção e repressão da manifestação que havia sido montado. A segurança de Estado também despachou os seus efectivos a partir de Luanda, e só o Santos Kuntuala tinha dificuldades em chegar a Malanje por falta de dinheiro para o transporte público. Teve de ser o Kimbamba, um técnico de frio, a pagar do seu bolso para que o seu co-organizador e amigo pudesse estar presente no local da manifestação. Santos Kuntuala chegou a Malanje a 4 de Janeiro, por volta das 10h40, minutos antes do início previsto da marcha.
As medidas incluíam proibir os jovens do sexo masculino de circularem no centro da cidade, assim como proibir que se reunissem muitos homens durante o período previsto para a manifestação. A polícia também se dispôs a confiscar telemóveis e a interromper todos aqueles que estivessem a falar ao telefone, no centro, de modo a controlarem efectivamente a circulação de informação. Os jovens que circulassem com mochilas ou sacos nas zonas consideradas sensíveis pelas autoridades policiais eram revistados. Foram bloqueadas diversas vias.
Desde o dia 28 de Dezembro, a residência de João Kanda encontrava-se sob forte dispositivo de vigilância permanente. A 4 de Janeiro, notando o silêncio de Kanda e Kakienze, que ali se hospedara, os agentes da segurança invadiram a residência. Os jovens haviam escapado durante a noite.
Intrépidos, juntaram-se os quatro e, com os seus dísticos, concentraram-se num ponto não previsto pela polícia. Tiveram tempo de mostrar os dísticos e foram logo detidos. Excepto um sopapo desferido contra o Kimbamba, por ter refilado contra os empurrões dos agentes policiais, não houve a habitual sessão de tortura e espancamentos que a Polícia Nacional habitualmente reserva para os manifestantes.
Estes reclamam apenas terem sido vexados com impropérios proferidos por vários agentes policiais e da segurança, como “parecem feiticeiros”, “mijões”, “mortos de fome”, “desgraçados”, entre outros. Foram filmados e fotografados.
No interrogatório, segundo Kuntuala, repetiu-se a principal pergunta destinada a todos os manifestantes: Quem são os mandantes da manifestação?
“Eu respondi que o mandante é o hino nacional porque diz: ‘honremos o passado e a nossa história (...), assim como a Constituição, que nos confere esse direito de manifestação’”, relata Kuntuala.
Lembrei-me, com admiração, o que me dissera um amigo sobre a estratégia de campanha do MPLA por altura das primeiras eleições de 1992. Esse amigo tinha participado da concepção da estratégia, que se traduzia numa fórmula de “iniciativas de cosmética (70 por cento)” e exploração e maximização das fraquezas dos adversários (30 por cento), sobretudo da UNITA, através da propaganda.
Hoje, a estratégia comum de campanha dos jovens manifestantes é extraordinária: eles exploram e maximizam as fraquezas do executivo do presidente José Eduardo dos Santos com ironia. Essas fraquezas são, sobretudo, a incapacidade de respeitar o espírito e a letra da Constituição e de resistir à tentação de reprimir o seu próprio povo.
A outra grande vantagem dos jovens assenta na ausência de uma estratégia comum sobre os objectivos de manifestação, de mobilização popular e angariamento de recursos para o efeito. Porque não há estratégia, o regime desconfia até do vento e vê fantasmas por todo o lado.
Finalmente, a corrupção e as intrigas do poder levam a que os principais conselheiros de segurança do presidente o mantenham prisioneiro do medo. Transmitem a ideia de que o seu poder está ameaçado e demandam mais poderes, fundos e impunidade para eliminarem tais ameaças e enriquecerem ainda mais.
O Irmão Detido e a Extorsão Policial
Hoje, o Santos Kuntuala encontrou-se comigo para tratar finalmente da terceira questão. Trata-se do caso do seu irmão Bento Tomás Alexandre, de 21 anos, detido desde 11 de Outubro passado, por ter agarrado pelos colarinhos um automobilista que insultava o seu pai à porta de casa, no Bairro Vila Flor, no Tala Hady, em Luanda.
O pai, Samuel Domingos, trabalhava na drenagem da água estagnada à sua porta, quando fez sinal ao automobilista em causa para que abrandasse a velocidade ao passar pela poça de água, para não sujar os transeuntes. Segundo conta a família, o automobilista parou a viatura diante de Samuel Domingos, mandou-o “à merda” e recebeu a mesma resposta, gerando-se uma discussão. Ao ouvir a troca de palavras, Bento Alexandre, que se encontrava no interior da residência, saiu em defesa do pai. Samuel Domingos repreendeu o filho por ter agarrado pelos colarinhos o automobilista, que se encontrava na viatura. E deu-lhe a tarefa de ir fazer compras, segundo afirmou.
Em menos de meia hora, o automobilista, cuja identidade a polícia se recusa a revelar à família, surgiu diante do portão da família em causa, com vários agentes da investigação criminal, e ordenou a detenção do jovem. Este foi encaminhado à 12ª Esquadra da Polícia Nacional. Falei com a mãe do jovem, Bernardete Tomás.
“Perguntei directamente ao queixoso por que ele ordenara a detenção do meu filho. Ele respondeu-me que o meu filho o tinha agarrado pela camisola. Não disse mais nada”, explica a mãe.
“O investigador [cujo nome não foi revelado à família] exigiu ao meu marido o pagamento de US $1,500 dólares ao queixoso para libertar o meu filho]”, denuncia a mãe. “O meu marido exigiu que lhe passassem uma factura. Aí a polícia inventou que o meu filho roubou o telefone do senhor. No local só estavam os três. O senhor nunca saiu do carro e o meu filho apenas o agarrou. O meu marido insistiu na factura”, prossegue.
Ainda segundo a mãe, “o investigador é tão matumbo que não foi possível saber mais nada ou explicar o que fosse. Ele só queria o dinheiro. O meu filho está detido há quase três meses sem nunca ter sido ouvido”..
Falei com o detido, Bento Tomás, que foi transferido para a cadeia de Viana (Bloco 2, 2º Andar). O jovem reitera que nunca foi ouvido e que só na cadeia de Viana soube que o processo que o acompanhou o indicia de “tentativa frustrada de furto de viatura”.
“Nunca me interrogaram, nunca me tiraram da cela para ser ouvido. Aqui em Viana também não. O procurador junto da 12ª Esquadra disse-me apenas que se eu e o meu pai não pagarmos os US $1,500 o meu caso será grave e não saberei onde poderei acabar”, afirma o jovem por via telefónica.
Despedi-me do jovem, que se encontra adoentado, e disse ao Santos Kuntuala que escreveria sobre o seu irmão também. A polícia nem sequer permite que a família saiba o nome do queixoso, e o suspeito não recebeu qualquer notificação sobre o crime de que lhe acusam. Apenas informação oral.
E, assim, passei o dia de hoje com o Santos Kuntuala e ao telefone com os seus familiares. Espero que da próxima vez ele me fale de si. Escrever é o que posso fazer.
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