sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo e a miopia brasileira





A irreverência do Charlie Hebdo nada tem a ver com islamofobia
Fiquei assustado ao ler no Facebook que, no Brasil, tinha gente desconfiando ser o Mossad ou a CIA o autor da chacina de ontem, na revista Charlie Hebdo. Isso mesmo sabendo-se que os autores, agora já identificados, tinham clamado aos berros “Vingamos o Profeta Maomé” ao abaterem dois policiais, e berraram alto e forte a ponto de terem seus gritos gravados “Alá é Grande!” em árabe. Existe uma tal desinformação no Brasil quanto aos feitos do chamado Estado Islâmico e seus fanáticos?

Por Rui Martins, de Genebra

Também me decepcionei com uma socióloga brasileira formada e vivendo em Paris, que num texto deplorável postado no Facebook, considerou os caricaturistas assassinados como jornalistas brancos islamófobos, num total desconhecimento do humor da revista Charlie Hebdo, irreverente com todos os credos e governos, parecida nisso com o nosso Pasquim da época da ditadura, com seu ratinho nazista e linguagem de deixar corada menina de família, criada em colégio de freiras ou evangélica. E numa total ignorância de que o atentado feriu não só a revista, desabusada e tiradora de sarro de políticos e religiosos, como principalmente a nossa própria conquista de liberdade de expressão. E, além de tudo, esses caricaturistas eram militantes antiracistas, portanto improcedente serem chamados de islamófobos, mesmo porque alguns os confundiam como extremistas de esquerda.
Enfim, o jornalista Alberto Dines falou em atentado político e não religioso. Evidentemente é político pelas consequências que pode acarretar. O caricaturistas do Le Monde, Plantu, declarou mesmo tratar-se de uma cilada, com o objetivo de lançar a população francesa contra a minoria muçulmana. Porém, o móvel do atentado foi religioso – uma resposta às caricaturas de Maomé publicadas duas vezes, em edição especial, por Charlie Hebdo.
Há algum tempo, publiquei no Direto da Redação, ainda sob a editoria do colega Eliakim Araújo, dois textos que se tornam hoje atuais: um sobre a condenação à morte do escritor Salman Rushdie (De Salman Ruschdie a Charlie Hebdo) e outro sobre a questão do respeito ou não às figuras religiosas como o Deus ocidental, Maomé, Alá, Jesus, o Papa e etc. (Censura em nome de Deus).
Reproduzo, logo abaixo esses dois textos como subsídio para se entender o massacre cometido ontem por três fanáticos islamitas contra a revista satírica Charlie Hebdo.
De Salman Rushdie a Charlie Hebdo – 29.9.12
Deus tem de ser respeitado, nisso todas as religiões, circuncisas ou não, estão de acordo. E, por tabela, têm de ser respeitados aqueles que representam Deus na Terra – podem ser Jesus, Maomé, Buda, o Papa – ou os livros nos quais se acredita estar a Revelação divina, no caso a Bíblia, o Corão, o Talmud.
A questão de se instituir a censura em nome de Deus e das religiões foi o tema mais debatido nos últimos dias, na Comissão de Direitos Humanos, tanto em Genebra como em Nova Iorque, transformada ao que parecia na comissão de defesa dos direitos divinos, e divide principalmente os países ocidentais e os países árabes, surge sempre, nestes últimos doze anos, durante os trabalhos da Comissão de Direitos Humanos.
E este ano, o filme islamófobo e as caricaturas de Maomé na revista Charlie Hebdo, foram o pretexto para a delegação do Egito levantar a necessidade de se criar, a nível internacional da ONU, a proibição de se criticar ou difamar as crenças religiosas.
Para facilitar a digestão do reconhecimento de uma censura mundial, os egípcios, apoiados por países árabes, tentaram assimilar a difamação das religiões com racismo. Aproveitaram para isso um projeto contra o racismo proposto pela África do Sul, no qual tentaram incluir um parágrafo dedicado à discriminação de toda religião, bem como os atos visando os símbolos religiosos e pessoas veneradas .
A jogada foi inteligente e, deixando-se de lado denúncias relacionadas com torturas de pessoas e violações reais de direitos humanos em muitos países, os debates sobre religião prolongaram-se por três dias.
O Egito, desta vez, perdeu a parada, mas conseguiu marcar a exigência dos muçulmanos. Do texto inicial do parágrafo foi retirada a parte relacionada com a difamação de religiões e de pessoas veneradas. E, sem dúvida, voltarão à carga no próximo ano. É de se prever que, se o Ocidente não mantiver uma oposição cerrada, em nome da liberdade da expressão, a ONU acabará por aceitar a criação da censura religiosa.
Para as delegações dos países ocidentais, o que se defende na Comissão de Direitos Humanos é o direito individual de praticar ou não uma religião. A questão dos insultos ou difamação de religiões já existe na legislação nacional de alguns países, e isso se considera como suficiente.
Por exemplo, no caso das caricaturas de Maomé publicadas na revista Charlie Hebdo, algumas associações muçulmanas na França entraram com processo contra a revista. Uma iniciativa legal que caberá a um juiz ou tribunal decidir.
Entretanto, antepor as religiões ao direito individual poderá se transformar num perigoso precedente, pois justificará os excessos já cometidos em muitos países teocráticos e impedirá aos não religiosos qualquer menção contra credos religiosos. E, em pouco tempo, todas as religiões acabarão aproveitando a brecha aberta pelos muçulmanos para sacralizar uma censura religiosa, fatal à liberdade de expressão.
Censura em nome de Deus – 7.10.12
Deus tem de ser respeitado, nisso todas as religiões, circuncisas ou não, estão de acordo. E, por tabela, têm de ser respeitados aqueles que representam Deus na Terra – podem ser Jesus, Maomé, Buda, o Papa – ou os livros nos quais se acredita estar a Revelação divina, no caso a Bíblia, o Corão, o Talmud.
A questão de se instituir a censura em nome de Deus e das religiões foi o tema mais debatido nos últimos dias, na Comissão de Direitos Humanos, tanto em Genebra como em Nova Iorque, transformada ao que parecia na comissão de defesa dos direitos divinos, e divide principalmente os países ocidentais e os países árabes, surge sempre, nestes últimos doze anos, durante os trabalhos da Comissão de Direitos Humanos.
E este ano, o filme islamófobo e as caricaturas de Maomé na revista Charlie Hebdo, foram o pretexto para a delegação do Egito levantar a necessidade de se criar, a nível internacional da ONU, a proibição de se criticar ou difamar as crenças religiosas.
Para facilitar a digestão do reconhecimento de uma censura mundial, os egípcios, apoiados por países árabes, tentaram assimilar a difamação das religiões com racismo. Aproveitaram para isso um projeto contra o racismo proposto pela África do Sul, no qual tentaram incluir um parágrafo dedicado à discriminação de toda religião, bem como os atos visando os símbolos religiosos e pessoas veneradas .
A jogada foi inteligente e, deixando-se de lado denúncias relacionadas com torturas de pessoas e violações reais de direitos humanos em muitos países, os debates sobre religião prolongaram-se por três dias.
O Egito, desta vez, perdeu a parada, mas conseguiu marcar a exigência dos muçulmanos. Do texto inicial do parágrafo foi retirada a parte relacionada com a difamação de religiões e de pessoas veneradas. E, sem dúvida, voltarão à carga no próximo ano. É de se prever que, se o Ocidente não mantiver uma oposição cerrada, em nome da liberdade da expressão, a ONU acabará por aceitar a criação da censura religiosa.
Para as delegações dos países ocidentais, o que se defende na Comissão de Direitos Humanos é o direito individual de praticar ou não uma religião. A questão dos insultos ou difamação de religiões já existe na legislação nacional de alguns países, e isso se considera como suficiente.
Por exemplo, no caso das caricaturas de Maomé publicadas na revista Charlie Hebdo, algumas associações muçulmanas na França entraram com processo contra a revista. Uma iniciativa legal que caberá a um juiz ou tribunal decidir.
Entretanto, antepor as religiões ao direito individual poderá se transformar num perigoso precedente, pois justificará os excessos já cometidos em muitos países teocráticos e impedirá aos não religiosos qualquer menção contra credos religiosos. E, em pouco tempo, todas as religiões acabarão aproveitando a brecha aberta pelos muçulmanos para sacralizar uma censura religiosa, fatal à liberdade de expressão.
Rui Martins, jornalista, escritor, líder emigrantes, editor do Direto da Redação

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