Para obrigar a professora a não usar
saia, os alunos muçulmanos escarravam nas suas pernas
Por Manuela Degerine, de Lisboa
correiodobrasil.com.br
O jornal “Charlie Hebdo” foi fundado em
1970 e tem combatido – com humor – os tabus, a estupidez e a demagogia. Para os
franceses o título evoca um grupo de criadores que vai de Cavanna, Reiser, Cabu
(assassinado) a Charb, Honoré e Wolinski (igualmente assassinados), figuras
lendárias pelo inconformismo, pela irreverência, pela intransigência. Pela
coragem. Pelo civismo. Pelo humanismo. (Bernard Maris – também ele assassinado
– representava a economia humanista.)
Quando foram mortos estavam a preparar
uma edição do jornal contra o racismo… Cabu e Wolinski – entre outros: os
fundadores – faziam parte da geração que se celebrizou em maio de 1968 e
protagonizaram a liberdade sexual, a ecologia, o pacifismo, a generosidade, a
fraternidade: o sonho de um mundo melhor.
Estes escritores, cronistas,
caricaturistas têm-nos ajudado a pensar a vida, têm sido as nossas sirenes de
alarme, têm encarnado a nossa rebeldia, têm alargado a minha e a vossa
liberdade, também a vossa, sim, internautas portugueses: foram massacrados por
representarem a nossa vontade de rir, de inventar, de questionar, de escrever e
publicar.
Por isso tantos franceses têm
manifestado a sua dor e a sua indignação: “Somos Charlie”. O que é assim
muito fácil…
Como o filósofo Michel Onfray lembrou
ontem numa entrevista a “France Inter”, há decénios que a esquerda cedeu à
extrema direita o privilégio de refletir sobre a imigração, o islamismo, a
diferença; à sua maneira. São consequências desta miopia que agora nos surgem
pela frente…
Na sociedade dos anos 2000 predominam a
autocensura e o politicamente correto; o que progressivamente isolou os
resistentes de “Charlie Hebdo”. Toda a sociedade francesa se escondeu
atrás da sua coragem e com ela se foi desculpando por não correr os mesmos
riscos.
Não somos honestamente hoje “Charlie”
por não termos reagido quando uma bomba explodiu na sede do jornal e quando uma
canção explicitamente os condenou à morte… Lembram-se do poema de Bertolt
Brecht?
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei
Não era negro.
A seguir levaram operários
Não me importei
Também não era operário.
Depois levaram vagabundos
Mas não me importei
Porque não era vagabundo.
Posteriormente levaram desempregados
Como tinha emprego
Continuei a não me importar.
Agora levam-me a mim
Mas já é tarde.
Como não me importei com ninguém,
Ninguém se importa comigo.
Mas não me importei
Não era negro.
A seguir levaram operários
Não me importei
Também não era operário.
Depois levaram vagabundos
Mas não me importei
Porque não era vagabundo.
Posteriormente levaram desempregados
Como tinha emprego
Continuei a não me importar.
Agora levam-me a mim
Mas já é tarde.
Como não me importei com ninguém,
Ninguém se importa comigo.
Os alvos e bodes expiatórios mudaram
entretanto, quem hoje nos quer aniquilar não é nazi – cessemos de chamar
nazismo a tudo e mais alguma coisa – por isso substituamos “negros”,
“operários”, “vagabundos”, “desempregados”, que deixaram há muito de ser
vítimas do totalitarismo, por “feministas”, “desenhadores”, “jornalistas”,
“filósofos”, “realizadores” (por exemplo): o poema diz toda a estupidez da
nossa cobardia. (A maioria dos políticos e intelectuais quer reparar a máquina
com ferramentas de há cinquenta anos.)
Pouco conhecemos da religião muçulmana
por os efeitos que ela produz nos seus crentes não incitarem à descoberta. Já
viram/ouviram alguém de cultura muçulmana declarar-se publicamente ateu? Mesmo
a religião muçulmana que pretende ser moderada se impõe através do medo que os
islamistas inspiram, por consequência os seus cânones são burcas e nicabes, os
seus adjuvantes de culto são punhais, explosivos e metralhadoras…
Sabem como se diz em francês “auto da
fé”? Pois… “Autodafé”. Em português. E não nos podemos orgulhar disto. Apenas
um exemplo: o dramaturgo António José da Silva, que escreveu “Guerras de
Alecrim e Mangerona”, foi queimado na cidade de Lisboa em 1739.
A religião católica não era então mais
libertária do que o islamismo hoje, porém a nossa sociedade – com coragem,
obstinação, inteligência e muita luta – reduziu-lhe o poder. “Charlie Hebdo”
foi atacado por associações de católicos integristas mas quando o combate se
trava num tribunal não há perigo de vida.
A violência não nos forçará a trair três
séculos de luta: de Voltaire a Onfray, dos direitos do homem ao controlo da
natalidade, do respeito pela vida ao direito de usar minissaia…
Deixei de vestir saias – mesmo compridas
– nos dois últimos liceus por os alunos muçulmanos me escarrarem para cima das
pernas; o obscurantismo vai progredindo com estas pequenas cobardias. Com estas
desistências. Mais valem mil escarretas do que a submissão: também quero ser
Charlie.
Sabem qual é a prova de que somos fortes?… Não precisamos de metralhadoras.
Sabem qual é a prova de que somos fortes?… Não precisamos de metralhadoras.
Manuela Degerine,jornalista,
escritora, nasceu em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa. Foi professora em Queluz e em Macau.
Ensina agora a língua portuguesa num liceu de Paris. Os romances por ela
publicados: A curva do O , Lisboa, 1991, Jardins de Queluz, Lisboa, 1994; A
Dúvida e o Riso, Lisboa, 1997, Uma Gota de Orvalho, Lisboa, 2000, O Peixe
Sol,Lisboa, 2002. Em breve o seu novo romance Fado das Vidas Imperfeitas.
Direto da Redação é um fórum de debates,
editado pelo jornalista Rui Martins.
Sem comentários:
Enviar um comentário