quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

A cidade da clausura





Luanda deixou de ser uma cidade, é um grande negócio privatizado. Tudo o que é público foi banido e todo o espaço privado está sujeito a tais regras de segurança que mais se parece com uma gigantesca prisão

PUBLICO

São 5:30 da manhã. Milhares de carros fazem filas compactas que se movem lentamente numa única direcção. Os cerca de 20 km que falta até ao centro da cidade demorarão entre duas e três horas a percorrer. Os condutores que chegarem mais cedo ainda dormirão um pouco dentro do carro até que chegue a hora de se apresentarem no trabalho. Nessa altura, procurarão no banco de trás uma garrafa de água e com ela irão salpicar o rosto antes de se dirigiram para a empresa. Depois, ao fim da tarde, exaustos, tornarão a demorar as mesmas duas ou três horas para regressarem a casa. Chegam a casa entre as 21h e as 22h.
É assim todos os dias do ano, anos seguidos. Até podem ter conseguido mudar-se para um apartamento nas novas centralidades, subúrbios com 20 ou 50 mil apartamentos construídos pelas empresas chinesas. Contudo, sem empresas ou serviços incorporados nesses subúrbios, os moradores estão condenados a estes engarrafamentos diários, a esta clausura maciça de milhares de pessoas dentro de automóveis bloqueados em todas as ruas da cidade e seus acessos.
“Engarrafamento” parece um termo em desuso mas é o mais adequado para designar a massa de habitáculos avançando sem ordem, contorcendo-se entre camiões e centenas de vendedores de rua que se esgueiram entre os carros. “Engarrafamento”, mais do que “tráfego intenso” traduz melhor a ideia da vida a afunilar-se. E quanto mais perto do destino, pior. Para aqueles que nela têm de conduzir, a cidade exige uma habilidade invulgar para contornar as crateras no meio do alcatrão ou os lençóis de água onde bóiam sacos de plástico negros.
Um dos problemas desta cidade é estar a ser construída apenas como um amontoado de prédios com fachadas e pórticos brilhantes, onde o brilho dos materiais assinala de forma exibicionista que ali se está no império da construção civil financiada pelo dinheiro proveniente da extracção dos recursos naturais do país.
A cidade há muito que deixou de ser uma cidade, é apenas um grande negócio privatizado. Por isso, tudo o que é público foi banido e todo o espaço privado está sujeito a tais regras de vigilância e de segurança que mais se parece com uma gigantesca prisão.
Ao contrário do que afirmam os economistas ultraliberais, a sociedade não se constrói à semelhança de uma pirâmide que funcione fazendo com que quanto mais dinheiro chegue aos do topo, mais dinheiro corra para baixo, para ser distribuído pelas outras camadas da pirâmide, uma a uma, até à base.
Na cidade o que se vê é uma arquitectura de resposta rápida e para impressionar: prédios que se constroem usando mármores raros e madeiras preciosas, vidros e metais resplandecendo; e as ruas (a base da pirâmide) com esgotos a céu aberto, buracos como crateras, lixo que se acumula no que já foram passeios. A ruptura existe entre o topo, o poder, o luxo, tudo o que é propriedade privada -- e o restante. O restante é a coisa pública, o espaço público.
Uma cidade que não tem teatros nem cinemas, nem jardins nem parques seguros, nem calçadas nem passeios para as pessoas caminharem, nem museus nem livrarias e os seus públicos, uma cidade assim não é bem uma cidade. É um amontoado de construções, de esqueletos de prédios, argamassas por onde passam pessoas. Um lugar sem espaço público, um lugar anti-democrático.
A própria natureza, em outros lugares fogosa e resplandecente, foi expulsa daqui. Assim se expulsou África da própria África.
Ficaram uns resquícios de plantas decorativas aprisionadas em vasos nos halls dos edifícios de vidro e nos jardins domesticados dos hotéis. Mas as casas da “baixa” vão sendo demolidas e com elas desaparece a memória das coisas boas e más da história da cidade.
Onde outrora viviam 400 mil habitantes hoje vivem seis milhões, subjugados ao grande culto do dinheiro, caminhando em círculos. O dinheiro é o fetiche, o objecto de obsessão da cidade. Toda a actividade procura a acumulação de dinheiro. Como numa corrida ao ouro no far West, vale tudo para obter mais uma moeda: vale o isolamento, a claustrofobia dos hotéis, vale a criminalidade organizada ou episódica, valem a arrogância, a pressa, as filas intermináveis, as praias vigiadas, a insolência dos polícias.



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