Luanda deixou de
ser uma cidade, é um grande negócio privatizado. Tudo o que é público foi
banido e todo o espaço privado está sujeito a tais regras de segurança que mais
se parece com uma gigantesca prisão
PUBLICO
São 5:30 da manhã. Milhares de carros
fazem filas compactas que se movem lentamente numa única direcção. Os cerca de
20 km que falta até ao centro da cidade demorarão entre duas e três horas a
percorrer. Os condutores que chegarem mais cedo ainda dormirão um pouco dentro
do carro até que chegue a hora de se apresentarem no trabalho. Nessa altura,
procurarão no banco de trás uma garrafa de água e com ela irão salpicar o rosto
antes de se dirigiram para a empresa. Depois, ao fim da tarde, exaustos,
tornarão a demorar as mesmas duas ou três horas para regressarem a casa. Chegam
a casa entre as 21h e as 22h.
É assim todos os dias do ano, anos
seguidos. Até podem ter conseguido mudar-se para um apartamento nas novas
centralidades, subúrbios com 20 ou 50 mil apartamentos construídos pelas
empresas chinesas. Contudo, sem empresas ou serviços incorporados nesses
subúrbios, os moradores estão condenados a estes engarrafamentos diários, a
esta clausura maciça de milhares de pessoas dentro de automóveis bloqueados em
todas as ruas da cidade e seus acessos.
“Engarrafamento” parece um termo em
desuso mas é o mais adequado para designar a massa de habitáculos avançando sem
ordem, contorcendo-se entre camiões e centenas de vendedores de rua que se
esgueiram entre os carros. “Engarrafamento”, mais do que “tráfego intenso”
traduz melhor a ideia da vida a afunilar-se. E quanto mais perto do destino,
pior. Para aqueles que nela têm de conduzir, a cidade exige uma habilidade
invulgar para contornar as crateras no meio do alcatrão ou os lençóis de água
onde bóiam sacos de plástico negros.
Um dos problemas desta cidade é estar a
ser construída apenas como um amontoado de prédios com fachadas e pórticos
brilhantes, onde o brilho dos materiais assinala de forma exibicionista que ali
se está no império da construção civil financiada pelo dinheiro proveniente da
extracção dos recursos naturais do país.
A cidade há muito que deixou de ser uma
cidade, é apenas um grande negócio privatizado. Por isso, tudo o que é público
foi banido e todo o espaço privado está sujeito a tais regras de vigilância e
de segurança que mais se parece com uma gigantesca prisão.
Ao contrário do que afirmam os economistas
ultraliberais, a sociedade não se constrói à semelhança de uma pirâmide que
funcione fazendo com que quanto mais dinheiro chegue aos do topo, mais dinheiro
corra para baixo, para ser distribuído pelas outras camadas da pirâmide, uma a
uma, até à base.
Na cidade o que se vê é uma arquitectura
de resposta rápida e para impressionar: prédios que se constroem usando
mármores raros e madeiras preciosas, vidros e metais resplandecendo; e as ruas
(a base da pirâmide) com esgotos a céu aberto, buracos como crateras, lixo que
se acumula no que já foram passeios. A ruptura existe entre o topo, o poder, o
luxo, tudo o que é propriedade privada -- e o restante. O restante é a coisa
pública, o espaço público.
Uma cidade que não tem teatros nem
cinemas, nem jardins nem parques seguros, nem calçadas nem passeios para as
pessoas caminharem, nem museus nem livrarias e os seus públicos, uma cidade
assim não é bem uma cidade. É um amontoado de construções, de esqueletos de
prédios, argamassas por onde passam pessoas. Um lugar sem espaço público, um
lugar anti-democrático.
A própria natureza, em outros lugares
fogosa e resplandecente, foi expulsa daqui. Assim se expulsou África da própria
África.
Ficaram uns resquícios de plantas
decorativas aprisionadas em vasos nos halls dos edifícios de
vidro e nos jardins domesticados dos hotéis. Mas as casas da “baixa” vão sendo
demolidas e com elas desaparece a memória das coisas boas e más da história da
cidade.
Onde outrora viviam 400 mil habitantes
hoje vivem seis milhões, subjugados ao grande culto do dinheiro, caminhando em
círculos. O dinheiro é o fetiche, o objecto de obsessão da cidade. Toda a
actividade procura a acumulação de dinheiro. Como numa corrida ao ouro no far
West, vale tudo para obter mais uma moeda: vale o isolamento, a
claustrofobia dos hotéis, vale a criminalidade organizada ou episódica, valem a
arrogância, a pressa, as filas intermináveis, as praias vigiadas, a insolência
dos polícias.
Imagem: ultradownloads.com.br
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